sábado, 3 de março de 2007

O auto-reconhecimento do Brasil

Artigo publicado no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 128 (dezembro de 2006).



Essa, provavelmente, não é a tese adequada para se levantar em uma publicação que, apesar do olhar diversificado (o qual me capturou, a princípio, como leitor, há exatos onze anos) tem ênfase no pop-rock mas, enfim..

Em função de determinados posicionamentos na sua política externa (que, convenhamos, a essa altura já não precisam mais ser mencionados), os Estados Unidos da América conseguiram angariar a antipatia de parcela significativa da população mundial. E, aliás, merecidamente. Mas devemos admitir pelo menos UMA característica interessante dos norte-americanos: eles não se constrangem pelo seu lado interiorano. Pelo contrário - parecem se orgulhar disso: a figura icônica do cowboy, com seu chapéu, botas, etc.. Quando eles falam em "nação forte e indivisível", parecem querer juntar os arranha-céus de Manhattan e os ranchos do Texas no mesmo abraço. E é curioso observar essa tendência na seara em que transitamos nesse veículo: a música.

(Interlúdio: o chapéu de cowboy, aliás, é um símbolo tão expressivo, que se tornou comum observarmos os astros do rock recorrendo a ele: o Queen, nos anos 70; Bob Dylan, sempre; The Edge (do U2), na turnê Pop, e por aí vai).

Um dos maiores artistas da terra do Tio Sam, Bruce Springsteen, possui um discurso que tem a mesma relevância para o cidadão urbano e para o rural. Consideremos também que um dos grandes ídolos americanos desde sempre, era um caipira de Memphis, tido até como Rei: Elvis Presley que, na verdade, tirou muito de sua musicalidade dos negros que trabalhavam nos canaviais do delta do rio Mississipi. A mesma influência foi exercida sobre os jovens ingleses dos anos 60, que se apaixonaram pelo blues: entre eles, Jimmy Page e Eric Clapton - este último, aliás (além de ter se tornado uma autoridade do gênero), sempre grava uma canção country a cada novo CD.

Os Rolling Stones também enfiaram as botas no esterco ("Got to scrape this shit right off your shoes, em "Sweet Virginia", do fundamental Exile On Main Street, de 1972). E até os Beatles se aventuraram no country: "I've Just Seen a Face", de Help (de 1965), música regravada pelo autor Paul McCartney já por três vezes (Wings Over America, de 1976; MTV Unplugged, de 1991; e no DVD At Red Square, de 2005).

Na verdade, vários artistas (não obrigatoriamente americanos) discorrem com desenvoltura sobre o pó da estrada e afins - na verdade, muitos até pautam suas carreiras nesse tema, como Neil Young, Eagles, ZZ Top, Bon Jovi, e outros.

Aqui no Brasil, entretanto (com raras exceções) a mentalidade vigente é…. cosmopolita, urbana - o que acaba soando efetivamente arrogante. Isso talvez pelo fato de o cotidiano em um grande centro urbano como o Rio de Janeiro - belíssima cidade onde nasci - ser, na verdade... limitado (por mais chocante e absurda que possa parecer essa afirmativa), porque se resume, basicamente, em engarrafamento - escritório - web - engarrafamento - shopping - engarrafamento - praia. E, quando se pega a estrada, o destino é.... praia também, claro - só que, mais distante.

Existe um deboche em torno da famosa canção de Tonico & Tinoco, "Menino da Porteira" ("Toda vez que eu viajava pela estrada de Ouro Fino..."), mas poucos sabem o que é... atravessar uma porteira. Assim como a grande maioria (parece até piada) conhece apenas leite em pó ou em caixa - nunca bebeu leite saído direto da vaca. Ou, pior ainda: muita gente nunca viu de perto... uma vaca - se tanto, na capa do Atom Heart Mother, do Pink Floyd. E, lamentavelmente, muitos jamais tiveram qualquer interesse pela literatura de João Guimarães Rosa, um dos maiores tesouros que a cultura nacional possui.

Para não sair do foco musical: certamente, um número grande de pessoas não assistiu Os 2 Filhos de Francisco, por duas razões: a) por não gostar da dupla goiana, obviamente; b) pelo fato de que a história se passa no sertão (a exemplo de Central Do Brasil, O Auto Da Compadecida, Eu, Tu, Eles e outros filmes nacionais) e, portanto, esse ambiente não "fazia parte do universo" delas.

Recentemente, Roberto Carlos foi criticado por ter gravado "Coração Sertanejo", a guarânia "Índia", e por ter chamado Chitãozinho & Xororó para cantar no seu álbum do ano passado. Tentativa de ampliar o mercado, visando atingir as camadas populares? Discordo totalmente. Presume-se que RC (o mesmo vale para Chico Buarque, que gravou recentemente uma participação no mais recente CD de Zezé di Camargo & Luciano) deve saber que o verdadeiro cerne de uma nação, apesar de todo o avanço tecnológico dos dias atuais, se encontra em suas regiões mais recônditas, longe das grandes avenidas.

Conclusão dessas mirabolantes divagações: o Brasil precisa se reconhecer, como sendo um país latino, lusófono (e essa reflexão até merece outro artigo), de tez mestiça e - como qualquer adolescente ginasiano pode constatar, olhando um bom Atlas Geográfico - com inconteste predominância de áreas rurais em seu território.

E isso não pode ser desprezado.



TOM NETO é colaborador do IM - INTERNATIONAL MAGAZINE. Entre uma água-de-coco na beira da estrada na Serra das Araras e um chopp no tumulto da praça de alimentação de um shopping center, pergunte o que ele prefere...

George Michael revisa um quarto de século de carreira

CD Twenty Five (Sony & BMG)
2006


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 128 (dezembro de 2006).



É, para quem declarou estar encerrando a carreira, George Michael, surpreendentemente, parece mesmo ter retomado o gosto pelo batente... Após lançar um DVD com sua biografia (A Different Story, devidamente resenhado na edição do IM - INTERNATIONAL MAGAZINE do mês passado) e iniciar turnê européia com shows sempre lotados, o cantor decidiu editar uma coletânea para documentar seus 25 anos de vida artística. Sintomaticamente batizada de Twenty Five (Sony & BMG), a compilação está sendo comercializada em versões dupla e tripla. E também está disponível a versão em DVD duplo, contendo praticamente TODOS os clipes de GM - o que configura um pacote bem mais completo do que Ladies And Gentleman, lançado em 1998.

A vida tem lá suas ironias: George passou quase toda a carreira tentando desvencilhar-se da imagem do sex-symbol que enlouquecia as adolescentes, no intuito de ser visto como um artista sério. E, no momento em que ele logra seu objetivo... acaba se reconciliando com seu passado. O CD 1, intitulado For The Living, traz duas faixas do Wham!, "Everything She Wants" e o hit oitentista "Wake Me Up Before You Go-go", ao lado dos sucessos dançantes de sua carreira solo (tais como "Fastlove", "Freedom '90", "Faith") e a inédita "An Easier Affair" (lançada como single no hemisfério norte esse ano). No restante da coleção, há mais três músicas de seu ex-grupo: "If You Were There", "Last Christmas" e o renegado mega-sucesso "Careless Whispers", composto quando o astro tinha apenas 17 anos de idade.

For The Loving, o segundo disco, focaliza as baladas românticas de George como "Father Figure", "Jesus To a Child", "Don't Let The Sun Go Down On Me" (com Elton John) e "One More Try", entre outras, apresentando também "This Is Not Real Love", dueto inédito com Mutya Bueno (integrante do trio pop inglês Sugababes).

E é justamente nesse CD que se encontra a maior surpresa do álbum (e de seus grandes trunfos): tendo cantado "Drive My Car" com Sir Paul McCartney no Live 8, no ano passado, GM teve como convidado (mais do que) especial em Twenty Five ninguém menos do que o próprio Paul, em um dueto emocionante em "Heal The Pain", exclusivamente gravada para esse trabalho. A colaboração faz todo o sentido: a canção possui todo o estilo McCartney (melodia, harmonia, arranjo acústico, letra, vocais em falsete) e a participação do ex-beatle pode ser muito bem compreendida como um aval ao trabalho de George - o cara conseguir levar Macca para o estúdio para cantar uma música... de sua autoria? Eis uma façanha para poucos.

Obviamente disponível apenas na versão tripla, For The Loyal, o terceiro álbum, é uma compilação de lados B, apresentando, em sua maioria, canções obscuras como "You Know That I Want To", "Please Send Me Someone", além das boas versões para "Roxanne" (sucesso do Police) e "My Baby Just Cares For Me" (do repertório de Frank Sinatra). Mas traz dois atrativos à parte: a gravação ao vivo de "Brother Can You Spare a Dime" (que não consta em nenhum dos álbuns do cantor) e a também inédita "Understand", o terceiro single que o artista editou esse ano.

Além de um intérprete soberbo, George Michael certamente já entrou na galeria dos grandes compositores populares. Discorda? Em Twenty Five, não faltam argumentos para fazer você mudar de idéia.

Sting: "será que eu sou medieval?"*


CD Songs From The Labyrinth (Universal)
2006

Resenha publicada no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 128 (dezembro de 2006).




Há alguns meses atrás, foi dito aqui mesmo no IM - International Magazine [nota: em artigo que pode ser relido no blog Arquivo] que Sting, em sua carreira solo, mostrou-se "muito mais ousado do que jamais fora ao lado de seus ex-companheiros de banda". Verdade. Entretanto, justamente por essa ousadia (que muitos classificam como presunção ou cabecismo), o ex-Police conquistou a ojeriza de determinados setores da chamada crítica "especializada" - que provavelmente se irritam em observar no baixista um raro caso de pop star culto, apreciador de jazz e boa literatura, que mora em um castelo na Toscana, fala francês, coisa e tal.

Todavia, dessa vez, Sting quiçá venha a oferecer aos seus detratores mais munição do que o habitual, com o recém-lançado Songs From The Labyrinth (Universal). Não que seja um trabalho ruim. Absolutamente. Contudo, Songs... talvez seja o movimento mais inesperado do artista em muitos anos, comparável apenas ao reflexivo The Soul Cages, de 1991, concebido pelo artista ainda sob o impacto do falecimento de seu pai.

Ou seja, não se trata de um álbum para qualquer ouvido.

Quem esperava algo do calibre de "Brand New Day" ou "If You Love Somedody", irá se deparar com um álbum de instrumental esparso, conduzido apenas pelo alaúde (instrumento de cordas do século XVI), completamente despido de qualquer reminiscência pop. Sting apropriou-se das canções medievais do compositor elizabetano John Dowland (1563-1626) e cometeu um disco erudito, de inegável linearidade (as faixas assemelham-se umas às outras), que poderá soar tedioso aos seus antipatizantes.

Consta que o guitarrista argentino Dominic Miller, que acompanha Sting há quinze anos, presenteou-o com um alaúde - e esse foi o estopim para o contato com o especialista bósnio Edin Karamazov, que dividiu com o inglês a execução do instrumento em Songs....

É importante observar que, das 23 faixas do disco, apenas 16 são canções propriamente ditas: sete são trechos declamados da carta que John Dowland escreveu à corte inglesa em novembro de 1595.

Nesse melancólico trabalho, a maior audácia de Sting - cujos dotes vocais, aliás, não são propriamente adequados ao canto lírico - é retratar, de maneira fiel, a época em que as canções foram escritas, sem a preocupação de soar, em momento algum, contemporâneo. Finalizando: de qualquer forma, vale lembrar que Songs From The Labyrinth se encontra atualmente no primeiro lugar da parada britânica de música clássica.


* "Medieval II", Rogério Meanda & Cazuza, 1985.

TV On The Radio: preste atenção nele

CD Return To Cookie Mountain (Interscope - importado)
2006


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 128 (dezembro de 2006).



Uma das atrações do palco Lab (espaço destinado à música experimental) na edição desse ano do Tim Festival, o TV On The Radio - que teve os seus instrumentos extraviados pela companhia aérea American Airlines - tocou com o equipamento emprestado pelos compatriotas do Thievery Corporation, que se apresentariam em seguida.

Misturando música negra americana, noisy e psicodelia, o grupo do bairro do Brooklyn, Nova York, é uma prova de que, quanto menos se espera, sempre surge alguém para tirar um coelho da cartola - trazendo ao cenário alguma idéia inusitada. Desde a execução dos arranjos até os vocais, nada no TVOTR soa semelhante a qualquer coisa que você já tenha escutado anteriormente. Alguém classificou o som da banda como "experimental, mas acessível", e essa é uma ótima definição - o ouvinte não é conquistado na primeira audição; mas, após a terceira, a coisa simplesmente... flui.

Fundado em 2001 pelo multiinstrumentista David Andrew Sitek e pelo vocalista Tunde Adebimpe (a entrada do guitarrista Kyp Malone ocorreu somente dois anos depois), o grupo veio ao Brasil para promover o seu segundo álbum, o surpreendente Return To Cookie Mountain (sem contar o independente OK Calculator, de 2002; e o EP Young Liars, de 2003), que representa vários passos à frente em comparação àquele que é considerado o seu CD de estréia, o bom Desperate Youth, Blood Thirsty Babes, de 2004.

Em Return..., o TVOTR faz seu trottoir entre o gutural ("Wolf Like Me" e a fantasmagórica "Playhouses"), o swingado (a boa "Hours" e "Dirt Whirl Wind") e o melódico ("A Method" e a belíssima "Tonight") com total desenvoltura e competência.

"I Was a Lover", a primeira faixa do álbum, é um claro exemplo de originalidade: o arranjo começa apresentando elementos característicos do R&B - vocais em falsete, Coral Sitar, seqüenciador -, até que, em um determinado momento, surgem tambores marciais (estilo Let 'Em In) e uma muralha de guitarras. Bem interessante.

A linda "Province" traz ninguém menos que David Bowie nos backing vocais (!). Aliás, o astro inglês tem declarado que o TVOTR atualmente é a sua banda predileta.

Caso você leia/ouça em algum lugar que Return To Cookie Mountain é um fortíssimo candidato para o título de melhor álbum de 2006, não se espante: o hype é justificado.

Eric Clapton & J. J. Cale: ao mestre, com carinho

CD The Road To Escondido (Warner)
2006


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 128 (dezembro de 2006).



Eric Clapton
é um workaholic. Editou há exatos doze meses o seu mais recente trabalho de inéditas, o bom Back Home; logo após, saiu em turnê mundial (apesar de ter declarado, em 2001, que não mais faria shows); e ainda teve tempo para reunir o lendário Cream para um DVD ao vivo (que, no exterior, saiu também em CD duplo). Agora, prosseguindo na série de tributos aos seus ídolos - o primeiro foi B.B. King, no ótimo Riding With The King, de 2000; logo após Robert Johnson, em Me And Mr. Johnson, de 2004 -, acaba de lançar The Road to Escondido (Warner), em parceria com J. J. Cale.

Para ainda quem não conhece, Cale é o autor de "Cocaine", um dos maiores sucessos da carreira de Clapton, além de "After Midnight" (faixa do primeiro álbum solo de EC, de 1970, e regravada para a caixa quádrupla Crossroads, de 1988 - versão que, aliás, fez enorme sucesso, impulsionada pela inserção no comercial da cerveja Michelob) e "Travelin' Light" (de Reptile, de 2001).

Acompanhada pela banda de Cale - com a participação especial de craques como o baixista Nathan East; o ótimo baterista Abe Labouriel Jr. (membro da banda de Paul McCartney); e o recém falecido tecladista Billy Preston (provavelmente em seu último trabalho) -, a dupla dialoga com suas vozes e guitarras, apresentando 14 canções, sendo 11 de autoria de Cale; uma de Clapton sozinho ("Three Little Girls"), uma parceria deste com John Mayer ("Hard To Thrill"); e um blues tradicional ("Sporting Life Blues"). Destaque para "Dead End Road", "When The War Is Over", "Ride The River" (o primeiro single), e "Danger", a faixa que abre a bolacha.

Estando na companhia de um músico root como J.J. Cale, era de se esperar que Eric Clapton deixasse em casa qualquer cacoete pop (de sucessos como "Heaven is One Step Away" ou "Pretending", por exemplo). E assim foi feito: The Road To Escondido é um álbum (com o perdão da redundância) estradeiro, cru, áspero, macho, que transita com naturalidade entre ritmos castiços, como o blues, o country e o shuffle. E que explica perfeitamente a reverência do Deus da Guitarra para com o trovador de Oklahoma.

Nota: Escondido é uma cidade situada no estado da Califórnia, EUA.

U2: música ou ativismo?

CD 18 Singles (Universal)
2006


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 128 (dezembro de 2006).



Ainda apontada por muitos como a maior banda de rock do mundo na atualidade - o que até faz sentido - o U2 editou mundialmente, no dia 20 de novembro, aquela que visa ser, até então, a sua compilação "definitiva": 18 Singles (Universal), comercializada em duas versões: simples e dupla (que traz um DVD bônus com 10 faixas registradas ao vivo na passagem da Vertigo Tour pela cidade de Milão, na Itália), com tiragem limitada. Há também uma versão em vinil - além do correlato em DVD, com todos os clipes das faixas que integram o CD.

E os clássicos da banda de Dublin estão praticamente todos aqui: "One", "New Years's Day", "With Or Without You", "Beautiful Day", "Mysterious Ways" e "Pride" entre outros. De novidade, apenas a participação do Green Day em "The Saints Are Coming" (lançada originalmente em 1978 no álbum de estréia do grupo punk escocês The Skids), e a inédita "Window In The Skies" - ambas gravadas no lendário estúdio Abbey Road, com produção de Rick Rubin. Portanto, para os neófitos no trabalho do U2, a coletânea é bem-vinda.

O vocalista Bono Vox é hoje uma figura respeitada pelos líderes mundiais (como, por exemplo, o ex-presidente norte-americano Bill Clinton, um de seus principais interlocutores), pelo fato de utilizar a sua popularidade de modo extremamente louvável: em prol de causas nobres como o perdão da dívida externa dos países subdesenvolvidos para com as grandes potências; e também por chamar a atenção do planeta para o flagelo da aids, que mata 2,5 milhões de pessoas por ano no continente africano, segundo dados oficiais.

Entretanto, todo esse engajamento talvez signifique que a música em si... possa estar ficando em segundo plano.

Tudo bem, estamos aqui falando de uma banda extremamente prolífica, com 26 anos de carreira. Contudo, há a possibilidade de 18 Singles trazer um certo... hum, desconforto aos antigos admiradores do grupo, justamente por tratar-se da terceira (!) compilação do U2 em apenas oito anos (a primeira foi The Best of 1980 - 1990; e a segunda, The Best of 1990 - 2000).

E devemos considerar que, apesar de ter gerado um primeiro single estupendo ("Vertigo") e uma turnê mundial (com direito a um ótimo show no Brasil) registrada em DVD, o mais recente álbum de Bono e cia, How To Dismantle An Atomic Bomb não pode ser considerado exatamente um The Joshua Tree ou um Acthung Baby.

Fica, portanto, a dúvida: será que 18 Singles, do ponto de vista criativo, é um mau sinal? Caso seja realmente isso... paciência. Salvar o mundo é bem mais importante do que mero entretenimento.

Los Hermanos em revisão

CD Perfil 99 - 05 (Som Livre)
2006


Resenha disponível no
BLOG DO TOM NETO.



Com quatro CDs que obtiveram boa resposta de público e crítica, os Los Hermanos fazem a sua primeira revisão, nas quinze canções da coletânea 99 - 05, que integra a série Perfil, da Som Livre.

E o álbum mapeia a carreira da banda desde o seu primeiro álbum (que comparece com "Quem Sabe", "Primavera") até o seu mais recente trabalho, o intimista e algo converso 4, editado em 2005 ("Condicional", "O Vento" e "Morena"), passando pelo bom Ventura, de 2003 ("O Vencedor", "Cara Estranho", "Além Do Que Se Vê" e "Último Romance").

A grande surpresa - considerando o fato de que o grupo carioca não mais a apresentava em suas apresentações - é a inclusão de "Ana Júlia". A canção (um sucesso estrondoso) foi, sem dúvida, um marco na trajetória do grupo carioca, obrigando-os inclusive a rever parâmetros - surgindo daí o ótimo Bloco do Eu Sozinho, 2001, considerado por muitos o maior clássico da discografia da banda (e certamente um dos mais instigantes de todo o rock nacional), representado em 99 - 05 por "Retrato Pra Ia-iá", a belíssima "Sentimental", "A Flor", "Todo Carnaval Tem Seu Fim" (incluída no roteiro dos shows de Maria Rita) e "Casa Pré-fabricada" (que recebeu da cantora uma delicada versão em seu Segundo).

A lamentar, somente a ausência de "Samba a Dois". Faixa de abertura de Ventura, a canção não teve grande repercussão na gravação original da banda, mas tem obtido boa execução nas rádios na versão de Fernanda Porto.

Coletânea, todos sabem, é um sintoma claro de consolidação. E os Los Hermanos, uma das mais relevantes bandas brasileiras da atualidade, indiscutivelmente já merecem essa deferência.

George Michael: um astro diferente

DVD A Different Story (Aegean - importado)
2006


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 127 (novembro de 2006).



Acaba de ser editado na Europa - ainda sem previsão de chegada ao Brasil - o DVD A Different Story, documentário que focaliza a vida e a carreira de George Michael, com depoimentos de Elton John, Mariah Carey e Noel Gallagher, entre outros. Na ocasião de lançamento do filme (que permaneceu meses em cartaz nos cinemas do Velho Continente), o cantor declarou estar encerrando sua carreira artística e, por essa razão, optou por lançar essa biografia como uma forma de apresentar a sua versão dos fatos - além de despedir-se dignamente de seu público.

- Este filme talvez seja o máximo que vocês terão de mim a partir de agora. Para mim, o futuro está muito mais ligado aos bastidores do negócio do que à exposição pública. Mas achei que era importante eu me explicar antes de desaparecer - declarou em entrevista da época.

Cantor de qualidade indiscutível, bom compositor, e competente como produtor e multiinstrumentista - sempre gravou seus discos praticamente sozinho -, Georgios Kyriacos Panayiotou nasceu em 1963, em North London, Inglaterra. Possui ascendência grega (da parte de seu pai, dono de restaurante no qual, antes da fama, o astro confessou ter lavado muitos pratos e trabalhado como garçom) e, em 25 anos de vida artística, vendeu mais de 80 milhões de discos, acumulando uma fortuna de quase US$ 150 milhões. Iniciou sua trajetória nos anos 80, na companhia do amigo de infância Andrew Ridgeley, no duo Wham!, que se tornou uma usina de sucessos, como "Wake Me Up Before You Go-Go". No DVD, os dois ex-parceiros recordam esse período.

Não tardou para que George se tornasse um artista solo. O primeiro álbum, Faith (1987) vendeu 14 milhões de cópias e gerou vários hits, como "One More Try", "Kissing a Fool" e a faixa-título. Clips como o de "I Want Your Sex" e "Father Figure" ajudaram a criar uma imagem de sex-symbol. Entretanto, para o disco seguinte, Listen Without Prejudice (1990), o cantor tinha outros planos: menos exposição na mídia e mais ênfase na música.

De fato, o álbum surpreendia, apontando novos caminhos: além da letra reflexiva de "Praying For Time", há uma convincente bossa nova ("Cowboys & Angels"), um cover de Stevie Wonder ("They Won't Go When I Go"), um interessante híbrido de violões e seqüenciadores ("Waiting For That Day") e uma canção típica do estilo de Paul McCartney (a bela "Heal The Pain").

A capa original mostrava apenas a foto em preto-e-branco de uma multidão de banhistas, sem qualquer menção ao nome do artista. Além disso, no vídeo promocional de "Freedom '90" - estrelado por top-models como Linda Evangelista e Naomi Campbell -, George Michael não aparecia.

Tal postura gerou descontentamento na sua gravadora, a Sony, e iniciou uma longa batalha judicial - durante a qual, obviamente, George não lançou nenhum álbum (participando apenas dos projetos Red Hot + Dance, Two Rooms e do EP Five Live ao lado de Lisa Stansfield e dos membros remanescentes do Queen). Mesmo assim, obteve sucesso mundial com o single "Don't Let The Sun Go Down On Me", pérola de Elton John, gravada ao vivo com a participação do próprio.

Findo o litígio, com vitória da multinacional (e George tendo que lançar uma coletânea dupla - Ladies & Gentlemen, editada, na verdade, em 1998 - para cumprir o contrato), ele realiza o seu disco da maturidade como autor: o ótimo Older, de 1996. Nesse trabalho, o músico põe em prática tudo o que almejava: belas melodias ("It Doesn't Really Matter" e "Jesus To a Child") arranjos elaborados ("To Be Forgiven" e "Spinning The Wheel") e boas letras (como a faixa-título e a melancólica "You Have Been Loved"), sem esquecer o pop que o consagrou (presente em "Fast Love" e "Star People"). No encarte, uma dedicatória a Antônio Carlos Jobim ("que mudou minha maneira de olhar para a música"), compositor que seria gravado por George no projeto Red Hot + Rio, com o clássico "Desafinado", cantada em português, num dueto com Astrud Gilberto. No mesmo ano, grava um bom MTV Unplugged que não chegou a ser lançado - embora pirateado em áudio e vídeo.

Em 1999, prosseguindo sua caminhada pela consolidação como artista sério, lança um disco de intérprete: Songs From The Last Century. Produzido pelo experiente Phil Ramone e acompanhado por uma big band, o álbum traz versões sofisticadas para canções de Frank Sinatra ("My Baby Just Cares For Me" e "Where Or When", de Rodgers & Hart), Roberta Flack ("The First Time Ever I Saw Your Face"), U2 ("Miss Sarayevo") e The Police ("Roxanne").

O mais recente trabalho de George Michael foi Patience, cuja gravação demorou incríveis cinco (!) anos. Embora sem a inspiração de Older, trata-se de um CD refinado, bem acima da média do pop atual. O repertório alterna faixas feitas sob encomenda para as pistas (a irresistível "Amazing", "Freek", "Flawless" e a polêmica "Shoot The Dog" - cândida "homenagem" a George W. Bush e ao premier britânico Tony Blair) e canções intimistas, com letras confessionais (tais como "Round Here", "John And Elvis Are Dead" e "My Mother Had a Brother"), tendo gerado, até o momento, cinco singles.

Em A Different Story, George não deixa de mencionar golpes duros que sofreu: a morte do namorado brasileiro, Anselmo Feleppa (em 1993) e de sua mãe (em 1997), além do desagradável episódio envolvendo um policial em um banheiro público em Los Angeles, que lhe rendeu um processo - e através do qual o mundo tomou conhecimento da sua homossexualidade.

Mas o curioso é observar que, meses após o lançamento da película, o cantor - em um gesto à la Silvio Caldas - revogou o encerramento de sua carreira: já editou dois singles em 2006 ("An Easier Affair" e "This Is Not Real Love", dueto com Mutya Buena). E, mais que isso, anunciou 25 Live, turnê européia - a primeira em 15 anos (!) - em comemoração ao quarto de século de vida artística. A apresentação de estréia foi no Palau Sant Jordi, Barcelona, no último dia 23 de setembro. Em nota oficial, um tanto constrangido, George fez um gracejo: "Bom, dá pra notar, não? Nunca diga nunca...".

É. Sábia decisão.

Em tempo: nesse ano, o cantor envolveu-se duas vezes em problemas com a lei. Em fevereiro e outubro, ele foi detido pela polícia britânica em situações semelhantes: desacordado em cima do volante do seu carro, supostamente sob o efeito de estupefacientes.

Chico Buarque e Zezé di Camargo & Luciano... juntos?!?

CD Diferente (Sony & BMG)
2006


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 127 (novembro de 2006).



É verdade: o encontro aconteceu no recém-lançado CD Diferente, da dupla goiana. A canção escolhida foi "Minha História" - versão que Chico fez em 1970 para "Gesùbambino", música do italiano Lucio Dalla - devidamente trazida para o universo sertanejo de Zezé & Luciano.

E a pergunta é: qual é o problema?

Meses atrás, quando a notícia do dueto foi divulgada no blog de um crítico musical carioca (com direito a foto de Chico e Zezé, sorridentes, no estúdio), houve uma enxurrada de protestos dos internautas, que reagiram como se esse gesto do autor de "Todo Sentimento" significasse (oh...) "a inevitável ruína da MPB ".

Quanta bobagem.

Tudo bem, você pode até não gostar dos irmãos. Mas é cinismo fingir que eles não existem e que nada disso está acontecendo. Todos sabemos que vendagens de discos não significam necessariamente qualidade, mas o fato é que Zezé di Camargo & Luciano, em 15 anos de carreira, atingiram (mesmo com toda a pirataria) a marca de 22 milhões de cópias vendidas - em média, três CDs por minuto, ininterruptamente (!).

E seria uma temeridade dizer que o país possui milhões de cretinos - os felizes compradores em questão -, que se permitiriam ludibriar por uma década e meia.

Na verdade, a dupla goiana já possui o respaldo de outros nomes de peso da música brasileira que, ignorando qualquer tipo de preconceito, se envolveram no filme Os 2 Filhos de Francisco, como Caetano Veloso (que, inclusive, assinou a trilha sonora), Nando Reis e Ney Matogrosso. E, na ocasião, ninguém deu um pio para reclamar. Mas agora com o Chico... foi esse alvoroço.

(Interlúdio: já que mencionamos Caetano... será que alguns setores da crítica temem discordar do compositor baiano em algum aspecto - e serem classificados como imbecis? Porque o mais recente CD do artista apresentou, entre outros descalabros, uma música absurda que poderia muito bem ser utilizada em filme de sacanagem português e o mais incrível é que - como na antiqüíssima lenda do Rei de Cueca - todo mundo achou... genial. E se fosse o Jota Quest que cantasse um refrão brilhante como "tu, onça, tu/ eu, jacaré, eu"? Certamente seria mais ridicularizado do que na época em que pintou o cabelo de Fanta, lembram? Engraçado, o Caê fala em "mucosa roxa, peito cor de rola" e, no final das contas, o Wando é que é o cara de "mau gosto"? É aquela velha história: dois pesos, duas medidas...).

Finalizando: Diferente recebeu esse título pelo fato de a dupla, em alguns momentos do álbum, trafegar por territórios alheios à música sertaneja - como na versão que Rossini Pinto fez para "Hey Jude" (grande sucesso na voz de Kiko Zambianchi em 1989), cantada por Luciano. O mesmo vale para a arriscada releitura (com participação de Silvinha Araújo) para a bela "How Can I Go On", gravada originalmente por Freddie Mercury e a cantora lírica Montserrat Caballé. Mas a verdade é que, espertos, os irmãos não mexeram em time que está ganhando: o disco é fiel ao estilo que consagrou a dupla e, ainda que possa continuar sem convencer a quem não os tolera... também não irá desapontar aos fãs de sempre.

Em tempo: existe, no entanto, uma explicação para que Zezé di Camargo & Luciano possuam no Rio de Janeiro o seu menor eleitorado. "Ah, é porque carioca tem bom gosto...". Bem, se fosse especificamente isso, a Banda Calypso não faria sucesso por aqui. A questão é que, dadas as suas inegáveis particularidades (geográficas, climáticas, idiomáticas, etc), o Rio eventualmente comporta-se dentro do país tal qual uma... ilha - como se determinadas manifestações de suma relevância e identificação com o restante do país... não lhe dissessem respeito.

Mas isso é assunto para outro artigo.


"...quem critica o que eu canto, não conhece o Brasil..."

("A Minha História", Zezé D Camargo, 2005).

Elton John: a seqüência, 31 anos depois

CD The Captain And The Kid (Mercury - importado)
2006


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 127 (novembro de 2006).



Será que é realmente necessária uma nota introdutória acerca do astro inglês Sir Elton John? Provavelmente não. Mas, em todo caso: trata-se de um dos maiores autores de música popular de todos os tempos, responsável por canções estupendas que estão impressas no córtex cerebral de várias gerações no mundo inteiro, tais como "I Guess That's What They Call It The Blues", "Daniel", "Rocket Man", "Nikita", "Empty Garden", "Skyline Pigeon", "Little Jeannie", além do clássico-mor "Your Song", entre muitas outras.

Entretanto, houve um período (mais precisamente entre a segunda metade dos anos setenta e início dos noventa) em que Elton, imerso no inferno das drogas, viu sua criatividade esmaecer de modo indisfarçável - embora sem jamais deixar de emplacar um hit aqui ou ali. Essa fase foi marcada por álbuns inócuos como The One - do qual só se salvou a pérola que dava nome ao álbum.

A reabilitação do músico foi marcada pelo ótimo Made In England (1995). A partir de então, Mr. Reginald Dwight (seu nome de batismo) recolocou o trem novamente nos trilhos, realizando álbuns que faziam jus à sua trajetória - com exceção do apenas mediano The Big Picture (1997), que ainda assim trazia a bela "Live Like Horses".

E, dois anos após o bom Peachtree Road - que não obteve, pelo menos no Brasil, a visibilidade merecida -, Elton acaba de editar mundialmente o álbum The Captain And The Kid (Universal), a inesperada continuação do bem-sucedido Captain Fantastic and The Brown Dirty Cowboy (1975), de onde saiu o hit "Someone Saved My Life Tonight".

Elton, há muito, deixou de permitir que qualquer sopro de "modernidade" se infiltrasse em sua música - portanto, não espere dele nenhuma novidade. O que há aqui é o bom e velho Elton John que você conhece e o seu inseparável piano, sem invencionices desnecessárias. E o músico brilha em "Wouldn't Have You Any Other Way", "Blues Never Fade Away" e na bela "The Bridge".

Destaque também para o vigoroso country-rock "Just Like Noah's Ark", para a balada country que batiza o trabalho e para "And The House Fell Down", que flerta com o estilo de música de saloon.

The Captain and The Kid é uma seqüência digna para um clássico. Trata-se de álbum sem altos e baixos, que pode ser ouvido sem a exclusão de uma faixa sequer. E não custa nada lembrar que está confirmada para 20 de janeiro de 2007 a apresentação do astro no Rio de Janeiro - a exemplo dos seus compatriotas Rolling Stones, que chacoalharam a areia da Praia de Copacabana em fevereiro desse ano. Quem esteve lá que o diga.

Legião Urbana: os 20 anos do "Dois"

CD Dois (EMI)
1986


Artigo publicado no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 127 (novembro de 2006).



Em face dos dez anos de falecimento de Renato Russo, menos lugar-comum do que falar sobre a biografia do músico, causa-mortis, o legado de sua obra - enfim, aquilo que todos já sabem -, é observar outra efeméride: Dois, considerado por muitos o melhor álbum da Legião Urbana, completa em 2006 duas décadas de lançamento.

Com influências claras de U2 e Sex Pistols, a banda vinha de uma ótima estréia em disco, o visceral Legião Urbana (1984), que emplacou várias faixas nas FMs do país, como "Será", "Ainda é Cedo" e "Geração Coca-cola" (curiosidade: após a bela versão de "Por Enquanto" que Cássia Eller registrou em seu primeiro álbum, 1991, as rádios passaram a tocar a gravação original da Legião que, cinco anos depois, tornou-se, inesperadamente, um sucesso).

Mas a proposta para Dois era outra. Renato Russo declarou, anos depois, em entrevista: "quando gravamos nosso segundo disco, estávamos sofisticadíssimos, ouvindo Joy Division, coisas assim". De fato, o espectro da célebre banda de Manchester é perceptível em vários momentos do álbum - e isso acabou significando um avanço em relação ao trabalho anterior (é sabido que Ian Curtis, um dos ídolos de Renato, o influenciou até no modo de cantar). E o produtor Mayrton Bahia não economizou em riqueza de detalhes - até então, não havia surgido no Brasil um trabalho, do ponto de vista sonoro, tão minucioso.

As letras tornaram-se menos adolescentes, com imagens mais complexas, como em "Daniel Na Cova Dos Leões", cujos versos iniciais falam sobre sexo oral ("aquele gosto amargo do teu corpo/ ficou na minha boca por mais tempo..."). "Acrilic On Canvas" usa, de modo poético, elementos relacionados às artes plásticas (ponto de fuga, carvão, luz & sombra) para falar da saudade que restou de um relacionamento destruído.

A questão da inadequação do indivíduo com o mundo - talvez a principal temática da Legião Urbana - aparece na sensível "Andrea Doria", um dos pontos altos do álbum. Na letra, um eu-lírico reflexivo dirige uma palavra de encorajamento e esperança uma menina plena de desânimo, a suposta Andrea Doria (que, na verdade, é o nome de um transatlântico genovês que naufragou em 1956, quando navegava para Nova York): "às vezes, parecia que era só improvisar / e o mundo, então, seria um livro aberto...".

A preocupação socio-política e ambiental é a tônica da veemente "Fábrica", assim como a violência (física e psicológica) característica dos grandes centros urbanos - e a maneira como as pessoas se habituam a essa violência, chegando a ponto de... saboreá-la - é retratada na quase punk "Metrópole" e na dylanesca "Música Urbana 2". E, a essa altura, o que mais se pode sobre o libelo "'Índios'"?

Mas a Legião também se permitiu um momento de descontração, na letra quilométrica de "Eduardo e Mônica", prenúncio do sucesso estrondoso que "Faroeste Caboclo" faria pouco mais de ano depois (embora essa última tenha sido composta antes) e na bela "Quase Sem Querer", regravada por Zélia Duncan em seu álbum Acesso, 1998.

Boa parte da respeitabilidade conquistada pela geração surgida nos anos 80 deve-se incontestavelmente a Dois (assim como a Ideologia, Selvagem?, Cabeça Dinossauro e outros). Depois de um álbum com esse grau de esclarecimento - um verdadeiro documento de uma era e de uma geração - , quem teria a arrogância de dizer que o rock brasileiro era "uma bobagem de filhinhos de papai"?

Por outro lado, não deixa de ser tristemente irônico o fato de que Renato Russo desapareceria exatos dez anos após ter perpetuado no imaginário de um número tão expressivo de pessoas os versos do clássico "Tempo Perdido":

"...temos todo o tempo do mundo..."

sexta-feira, 2 de março de 2007

Djavan: sucessos e análise combinatória

CD Perfil (Som Livre)
2006


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 126 (outubro de 2006).



E a Som Livre prossegue com a sua série de coletâneas Perfil, apresentando dessa vez o CD dedicado a Djavan - isso, menos de 12 meses depois de ter sido lançado um outro projeto revisionista: Na Pista, Etc, onde o artista alagoano - ao lado do experiente produtor Liminha - regravou várias de suas canções, porém com um acento eletrônico.

Hábil como melodista e cantor de belo timbre, Djavan coleciona sucessos, quase todos presentes nesse CD: "Meu Bem Querer", o ancestral samba "Flor de Lis" (o sonho de todos os calouros nas décadas de 70 e 80), "Sina", e a boa "Se Acontecer" (carro-chefe do último CD de inéditas do músico, o irregular Vaidade, 2004), entre outros. Destaque para as belíssimas "Pétala", "Oceano" - com direito a solo de violão flamenco do grande Paco De Lucia - e a pop "Lilás".

Perfil também traz algumas surpresas: "Gostoso Veneno", dueto com Alcione que não aparece em nenhum dos álbuns de Djavan; a pouco conhecida "Me Leve" (já regravada por Ivete Sangalo); a boa versão de "Drão", contida apenas no Songbook Gilberto Gil; e dois remixes (as recentes "Eu te Devoro" e "Acelerou").

Entretanto, apesar do inegável talento, é impossível deixar de observar uma estranha característica de Djavan como autor: a eventual opção pela poesia-por-análise-combinatória, como em "Açaí", por exemplo: "açaí, guardiã/ zum de besouro, um ímã/ branca é a tez da manhã", uma provável construção apenas para vestir a melodia.

Ou alguém tem outra explicação mais plausível?

E o que dizer então do refrão ininteligível de "Se"?

"(...) Sei lá o que te dá - não quer meu calor.
São Jorge, por favor, me empresta o dragão.
Mais fácil aprender japonês em Braille.(...) "

Um compositor iniciante, tendo escrito tais versos, seria imperdoavelmente ridicularizado. Mas como é o Djavan...

Contudo, no final das contas, tais deslizes não chegam a macular o inegável talento do artista. E Perfil, por sua vez, cumpre o papel de resumir a obra de Djavan - e certamente agradará aos seus admiradores.

Os Britos: o Falso Óbvio ou Fim de Semana Perdido

CD e DVD Os Britos Cantam The Beatles (Som Livre)
2006


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 126 (outubro de 2006).



O falso óbvio: quatro músicos experientes reúnem-se para um projeto paralelo em torno de um repertório consagrado. Beleza. E o resultado desse esforço coletivo é... brilhante, certo?

Errado.

O quarteto em questão atende pelo nome de Os Britos e é formado por George Israel (saxofonista do Kid Abelha, mas que, nesse trabalho, é responsável pela guitarra e pelos vocais), Nani Dias (produtor e guitarrista que já acompanhou Lobão, entre outros), Rodrigo Santos e Guto Goffi (respectivamente, baixista e baterista do Barão Vermelho). O grupo acaba de lançar CD + DVD Os Britos Cantam The Beatles, e aí cabe a pergunta: para quê?

Todo fundamentalismo é algo complicado, mas a verdade que, para os apreciadores da boa música pop, o cancioneiro do Beatles é, mal comparando, um território sagrado como Meca o é para os xiitas seguidores de Maomé. A nossa querida vovozinha Rita Lee cometeu em 2001 um disco bacana com versões simpáticas e nada previsíveis de pérolas como "If I Fell", "In My Life" e outras. Mas é aquela história: para vestir essa camisa... é preciso uma idéia muito boa.

E não foi exatamente o que ocorreu aqui. O álbum traz versões, acústicas em sua maioria, de canções majoritariamente da primeira fase dos rapazes de Liverpool (como "Nowhere Man", "I Feel Fine", "Ticket To Ride", "Drive My Car" e "I Need You", entre outras), tocadas por uma banda cover de luxo dos Fab Four. Mas que soa exatamente como o grupo daquele seu tio que acha que os anos 60 ainda não acabaram.

Nem a afinação de Paula Toller consegue acrescentar algum tempero à versão insípida de "Something". E melhor nem usarmos como parâmetro a gravação original contida em Abbey Road (1969): basta compararmos com o registro emocionante de Eric Clapton em dueto com Paul McCartney no já histórico Concert For George. Mas tudo bem - Os Britos e Paula não estão sozinhos nessa mancada: até um totem da MPB como o Ministro Gilberto Gil, certa vez, tropeçou em sua versão rasta do clássico de George Harrison.

Mas antes que alguém pergunte onde está o senso de humor do escriba, é importante dizer que Os Britos, ao que parece, decidiram fazer a coisa a sério: prova disso é que, ao lado desses clássicos, os caras ainda incluíram... duas músicas próprias inéditas (!). Que era tudo o que eles jamais deveriam fazer - soa pretensioso pacas (ainda que "Dia Comum" não seja má).

Para não dizer que é tudo em vão, Zélia Duncan está ótima na versão de "Two Of Us". Assim como o resgate da pouco conhecida "Rain" (lado B de "Paperback Writer") foi uma boa idéia - e a faixa traz algo do clima hindu Love You Too, contando com a participação do mutante Sérgio Dias. E a versão "While My Guitar Gently Weeps" traz boas guitarras de Nani Dias e Roberto Frejat, que ainda gravou o vocal principal.

Músicos amadores e profissionais sempre irão recorrer à música dos Beatles, como quem bate uma pelada em um dia de domingo. E isso, por si só, já justifica a existência d'Os Britos: quatro bons instrumentistas debruçando-se sobre a melhor obra pop do mundo podem realizar um show até divertido, coisa e tal. Mas registrar isso, estando a toda a discografia dos Beatles em catálogo? Enfim, um autêntico fim de semana perdido.

O divisor de águas de Zizi Possi

CD Sobre Todas as Coisas (Distribuidora Independente)
1991; reeditado em 2006


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 126 (outubro de 2006).



Em 1990, Zizi Possi vinha de seu último trabalho para a Polygram (atual Universal), o injustiçado Estrebucha Baby (1989), onde a cantora paulistana já insinuava um distanciamento do padrão radiofônico que lhe rendeu inúmeros sucessos na década anterior, tais como: "Perigo", "Asa Morena", "Começo, Meio e Fim" e "Caminhos de Sol", entre outros.

Sem gravadora, Zizi estreou um show que geraria, no ano seguinte, o álbum Sobre Todas as Coisas, que recebe agora reedição, via Distribuidora Independente. Com um repertório sofisticado e uma sonoridade camerística, o trabalho redefiniu parâmetros na carreira da cantora - que, a partir de então, pôde ser classificada em antes-e-depois deste disco.

Apesar de registrado em estúdio, o álbum possui - por ter tido sua origem através do roteiro de um show - uma dinâmica característica de uma apresentação ao vivo, devido à sua unidade conceitual e seus medleys bem construídos: como o que une "Alvorada" (Cartola e Carlos Cachaça) a "Eu Te Amo" (Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque) e à faixa-título (também de Chico, em parceria com Edu Lobo).

Entre boas canções de Dominguinhos & Nando Cordel, Noel Rosa ("Com Que Roupa?") e dos irmãos Jean e Paulo Garfunkel, entre outros, Zizi Possi registrou, com maestria, três do Ministro Gilberto Gil: "Rebento", "Barato Total" e a linda "A Paz" (parceria de Gil com João Donato), um grande sucesso em gravação anterior da cantora, apresentada aqui em releitura emocionante.

Os dois destaques do álbum, entretanto, são as versões da tocante "O Que é, O Que é?", de Gonzaguinha (em interpretação intensa, com um arranjo completamente despido de qualquer tempero sambista) e da bela "Corsário", de João Bosco e Aldir Blanc, em registro que nada deve à gravação imortalizada na voz de Elis Regina.

Sobre Todas As Coisas é um marco na carreira de Zizi que, com seu rigor estético, a beleza de seu timbre e uma afinação extraordinária, é uma das maiores cantoras vivas desse país.

Fábio Jr.: matando as saudades do pop

CD Minhas Canções (Sony & BMG)
2006


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 126 (outubro de 2006).



Mais um projeto de regravações acaba de chegar ao mercado: trata-se de Minhas Canções (Sony & BMG), o novo CD de Fábio Jr, onde o cantor registra um repertório majoritariamente pop, com músicas de Cazuza ("Codinome Beija-flor"), Titãs ("Epitáfio"), Skank ("Dois Rios") e Tim Maia ("Não Vou Ficar"), entre outras.

Catástrofe? Nada disso. Esperto, Fábio, pelo visto, não quis arranjar confusão e, dessa forma, não inventou moda - procurou respeitar as gravações originais e cometeu versões corretas de canções consagradas, conseguindo trazer todas para o seu universo.

É o caso, por exemplo, da otimista "Tente Outra Vez", de Raul Seixas - canção já gravada por nomes tão díspares quanto Zezé di Camargo & Luciano e Barão Vermelho. Aliás, falando em Barão: Fábio Jr. incluiu também "Por Você", em registro fiel ao espírito do grupo carioca.

O mesmo vale para a versão para "Quem de Nós Dois" (versão da italiana "La Mia Storia Tra Le Dita"), sucesso na voz de Ana Carolina, que aqui não careceu do respeitável material vocal da cantora mineira. E a parceria de Herbert Vianna com Paulo Sérgio Valle, "Se Eu Não te Amasse Tanto Assim" (a canção que Roberto Carlos se esqueceu de compor) também soa natural na voz de Fábio.

Há ainda as releituras para "Sangrando" (Gonzaguinha), "Sozinho" (de Peninha, sucesso na voz de Caetano Veloso) e "Juventude Transviada" (de Luiz Melodia, o artista que, há cerca de dez anos atrás, declarou a uma revista de música que, nos discos de colegas que gravam composições suas, costuma ouvir apenas as canções compostas por ele, Melodia - e nada mais).

E Fábio Jr. ainda deu-se ao luxo de abrir o CD com "A Cúmplice" (que é também a faixa de trabalho), um momento de delicadeza do quase sempre sarcástico menestrel Juca Chaves - o primeiro artista independente desse país, tendo falado em numeração de discos ainda nos anos 80 (!).

No final das contas, a opção pop desse projeto não deixa de ser uma (boa) surpresa - ainda que o IM - INTERNATIONAL MAGAZINE (através desse humilde escriba que vos fala) tenha afirmado, há pouco mais de seis meses atrás, que "claro, existe no Brasil esse reducionismo de estigmatizar certos artistas - e sem uma prévia avaliação imparcial. Entretanto, apesar de Fábio Jr. ser mais reconhecido atualmente pelo lado mais popular de seu trabalho (para muitos, brega mesmo), é importante observar que, no final dos anos 70, quando inexistia uma cena pop em nosso país - Kid Abelha e Lulu Santos ainda não haviam surgido - esse espaço era preenchido por Fábio Jr., com uma sucessão de hits como "Enrosca" (de Guilherme Lamounier, autor já comentado aqui no tablóide) e "Eu Me Rendo" (do tecladista Sérgio Sá)".

Minhas Canções é um disco até agradável do intérprete de "O Que é Que Há?" e, do ponto de vista comercial, é bem provável que dê certo. Mas também não oculta a realidade, que imediatamente salta aos olhos: na atual conjuntura (mesmo em um segmento mais popular, onde Fábio Jr, trafega) o mercado fonográfico carece de novos compositores.

E não é possível que ninguém tenha percebido isso.

David Gilmour: dinossauros caminham sobre a Terra


CD 
On An Island (Sony - importado)
2006

Resenha publicada no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 126 (outubro de 2006).




Após a já lendária reunião do Pink Floyd no Live 8 (e o oportuno lançamento, esse ano, do DVD duplo P.U.L.S.E, registro de sua última turnê mundial - disponível até então apenas em VHS), começaram as especulações sobre uma possível volta da banda. Na entrevista de lançamento do audiovisual, Richard Wright e Nick Mason mostraram-se abertos a qualquer possibilidade - ao contrário de David Gilmour (detentor do nome da banda) que, de modo naturalmente fleumático, refutou a hipótese de uma retomada das atividades do quarteto. Aliás, tanto Gilmour quanto o outro pólo criativo do Pink Floyd, o baixista Roger Waters, encontram-se, coincidentemente, em turnê européia. Waters vem divulgando a sua ópera (!) Ça Ira e o guitarrista, o seu On An Island, 22 anos (!) após a sua última empreitada solo.

E Gilmour concebeu um álbum intimista que causa a sensação de que ele, verdadeiramente... não tem mais interesse em prosseguir com o dinossauro. On An Island apresenta dez canções, quase sempre com aquelas ambiências que o fã do Floyd conhece bem. A reflexiva faixa-título certamente não chega a ser uma "Wish You Were Here", mas deixa, de cara, uma boa impressão.

A verdade é que, como autor, Gilmour sempre esteve alguns degraus abaixo de seu arqui-rival Roger Waters. Para ser mais exato, a criação sempre foi o calcanhar-de-Aquiles do Floyd pós-Waters. Exemplo claro disso foi The Division Bell (1993), o último álbum de estúdio da banda, do qual (tirando, por exemplo, "What Do You What From Me", razoável blues espacial - se é que cabe tal nomenclatura) pouco se salvava. Mas sabe que, em On An Island, até que David não faz feio nas composições? Obviamente, não estamos diante de um novo Dark Side of The Moon (até porque a história jamais se repete), mas "The Blue", "When We Start" e o blues "This Heaven" são faixas bem interessantes.

E, no decorrer da bolacha, há, claro, a famosa técnica do músico inglês - ainda mais perceptível nas instrumentais "Castellorizon" e "Then I Close My Eyes". Isso não é novidade: o cara toca simplesmente uma barbaridade - provavelmente é um dos maiores guitarristas vivos do rock mundial - e permanece no seu inconfundível estilo (adivinha quem fez aquele solo lancinante de "No More Lonely Nights", de Paul McCartney?).

Quer saber? Enquanto não há uma solução para o impasse sobre o retorno dessa entidade que se tornou o Pink Floyd - e há também a possibilidade de a questão não se resolver nunca -, On An Island até que é um aperitivo fino, digno de ser degustado pelos apreciadores dessa nobre iguaria.

Skank: o pop enquanto arte

CD 
Carrossel (Sony & BMG)
2006


Resenha publicada no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 126 (outubro de 2006).


Aos 15 anos de carreira, o Skank já ostenta um belo currículo. O grupo mineiro, líder das FMs nos anos 90, compôs mega-hits do calibre de "Garota Nacional" (que seria capaz de entusiasmar até uma enfermaria), "Te Ver" e "Jackie Tequila", um reggae de versos absolutamente inusitados ("Jackie é uma menina tão bonita que enjoa / (...) Linda toda, toda linda ela/ toda a beleza se reconhece nela (...)/ égua, língua, mingua a minha mágoa..."), entre muitos outros sucessos. Isso, sem contar canções que passaram desapercebidas do grande público, mas que, rearranjadas, até poderiam futuramente ser retomadas pela banda, como "O Beijo e a Reza" - ensolarada, se transformaria naturalmente em uma bossa nova -, "Eu Disse a Ela" e "Réu e Rei".

Em 2000, a guinada estética do álbum Maquinarama foi um passo decisivo na carreira do Skank. O dance-hall foi deixado de lado, em prol de uma formatação mais harmônica - tendência confirmada no sucessor Cosmotron, 2003, o último de inéditas da banda. Os resultados não poderiam ter sido melhores: desde então, os rapazes de Belo Horizonte produziram infalíveis gemas pop na mais pura linhagem Beatles ("Três Lados", "Vou Deixar"); momentos que não constrangeriam o Clube da Esquina ("Dois Rios", "Ali"); bossa sem o menor odor de roupa-velha-de-armário ("É Tarde", "Balada do Amor Inabalável"); e, não bastasse, uma versão personalíssima - e estourada - de uma canção de Gilberto Gil ("Vamos Fugir"), sem temer qualquer tipo de subserviência artística. Ou seja: os caras se garantem.

Trata-se, portanto, de um caso raro no Brasil - encontrando pares somente em Marisa Monte e outros poucos - de música de qualidade e, ao mesmo tempo, viável do ponto de vista comercial. Inteligentemente (na melhor tradição mineira), o grupo intercalou seus dois mais recentes discos de carreira com o seu primeiro CD ao vivo (MTV Ao Vivo em Ouro Preto, 2001) e também a sua primeira coletânea (Radiola, 2005, que trazia um repertório exclusivamente gravado no século XXI - com a notável ausência de "Resposta", 1998, que foi sem dúvida o marco zero da transformação).

Ora, não sejamos ingênuos: o Skank é contratado da gravadora Sony. Portanto, é fundamental equilibrar, entre um trabalho mais sofisticado e outro, produtos que também atendam aos interesses de uma empresa multinacional. Não considerar esses fatores é pura tolice. E é bem provável que o próximo passo seja um Acústico MTV.

Bem, o Skank acaba de editar um novo álbum de inéditas, Carrossel, no qual não apresenta o menor sinal de cansaço ou de auto-indulgência. Ou seja: Samuel Rosa, Lelo Zanetti, Haroldo Ferreti e Henrique Portugal ainda procuram.

E acham.

"Eu e a Felicidade", a faixa que abre a bolacha, tem letra psicodélica de Nando Reis - aliás, a melodia também tem muito do estilo do ex-titã - amparada por um dedilhado de violão algo... hum, digamos... caipira. As cordas asseguram o lado She's a Rainbow da coisa, que logo desemboca em um pop rock parrudo, com direito a um órgão Billy Preston e um belo solo de guitarra.

Mas a verdade é que, num gesto de coragem, o Skank - a banda que um dia gravou a pulsante "É Uma Partida De Futebol", lembra? - concebeu um trabalho onde a tônica são as canções mais delicadas, mais elaboradas, como a "O Som da Sua Voz", a bela "Seus Passos" e "O Homem Solitário" (típico clima de western italiano, que fecha o CD).

E são vários os bons momentos desse álbum. Aliás, o mais adequado seria dizer que nenhuma faixa aparece enchendo lingüiça - todas têm a sua proposta, o seu atrativo. A intensa "Lugar" é totalmente Wings - uma das bandas mais subestimadas desde sempre. E essa não é a única referência ao grupo que Paul McCartney liderou nos anos 70: a estradeira "Até o Amor Virar Poeira" lembra a levada de "Junior's Farm".

"Cara Nua", nos detalhes de guitarra, na melodia e nas alusões carnavalescas da letra de Humberto Effe (ex-Picassos Falsos) surpreendentemente soa um tanto... Los Hermanos. "Notícia" começa melódica e tristonha, para depois ter o seu andamento acelerado, praticamente metamorfoseando-se em outra canção.

"Trancoso" merece uma menção à parte: com letra de Arnaldo Antunes sobre linda melodia de Samuel Rosa, a canção é o registro fonográfico mais suave de toda a carreira da banda. Uma evolução e tanto em comparação a, por exemplo, "Saideira", de apenas oito anos atrás. Destaque também para a onírica letra (escrita por Rodrigo Leão) de "Antitelejornal", que possui um quê de Chico Buarque.

Um ouvinte mais atento irá perceber que o Skank foi minucioso na busca de timbres de teclados e guitarras para esse álbum - o que não é lá muito comum em discos nacionais. O melhor exemplo disso é a floydiana "Panorâmica". E ainda ouve-se um banjo aqui, uma flauta ali, uma marimba acolá...

A psicodelia corre solta na lisérgica "Garrafas", com melodia do baixista Lelo Zanetti (compositor bissexto, mas sempre eficiente dentro da banda - é ele o autor de "Canção Noturna" e "Resta um Pouco Mais") e instigante letra de Chico Amaral, com metáforas aparentemente sexuais: "e ela me mostrou uma flor lilás/ que eu aspirei...".

O primeiro single de trabalho, "Uma Canção é pra Isso" (cujo clip, antes do fechamento dessa edição, já era, incrivelmente, um dos indicados desse ano ao VMB na MTV) é mais um clássico instantâneo advindo do estúdio Máquina e, na certa, você já ouviu - se é que não esteve fora do país nos últimos 30 dias. E há um grande potencial radiofônico também em "Mil Acasos" e "Balada Pra João e Joana" - essa última, um pop certeiro como uma falta cobrada no ângulo.

Carrossel é um bom disco que confirma o vigor criativo e o amadurecimento do quarteto das Alterosas - e, nesse caso, amadurecimento nada tem a ver com "envelhecimento", muito menos "apodrecimento". Mais uma vez, é revalidado o conceito de pop-como-forma-de-arte criado nos anos 60 por Andy Warhol. Entretanto, com uma ressalva: os 15 minutos de fama do Skank estão muito longe de terminar.



Veja o vídeo oficial de "Uma Canção é pra Isso":