domingo, 4 de fevereiro de 2007

Marina Lima: "por que não nos reinventar?"

CD Lá nos Primórdios (Fullgás/ EMI)
2006

Resenha disponível também no TOM NETO - BLOG.



É necessário observar toda a trajetória artística de Marina Lima para compreender em que contexto se situa o seu novo trabalho de inéditas, Lá nos Primórdios (gravado de forma independente, apenas com a distribuição a cargo da EMI).

Ao lado de Kid Abelha, Cazuza e cia., a cantora e compositora carioca foi um dos pilotis da geração da MPB surgida nos anos 80 - exatamente: classificar aquela turma como sendo "apenas" rock é uma estupidez reducionista - com sucessos como a clássica "Fullgás", "Acontecimentos", e a linda "Virgem", entre tantos outros.

Na segunda metade dos anos 90, Marina entra em um processo depressivo que, ironicamente, afeta a sua voz. Registros à Meia-Voz, álbum de 1996, expõe o problema (e é importante dizer: com uma boa dose de coragem) já a partir do título: os registros vocais soam como pálidos rascunhos da intérprete de "Não Sei Dançar", lançada apenas seis anos antes.

Em 1998, é editado Pierrot do Brasil, trabalho aquém da capacidade de Marina. O ao vivo Síssi na Sua até insinuava uma retomada... que ainda não se confirmava. Seu sucessor, Setembro (2001) também passara em brancas nuvens (ainda que uma das canções, "Notícias", tenha integrado a trilha de uma novela global). E até o seu bom Acústico MTV não teve a resposta usual dos produtos lançados sob a chancela da emissora paulistana.

Entretanto, como o velho clichê da fênix que ressurge das cinzas, Marina Lima verdadeiramente renasceu a partir do show que deu nome ao CD recém-lançado. Primórdios estreou no final do ano passado e, rapidamente, tornou-se sucesso de crítica e público.

E o título desse álbum até pode suscitar algum caráter retrospectivo, sobretudo considerando que a cantora regravou - e, diga-se de passagem, de modo muito convincente - canções anteriores: "Difícil" (Todas, 1985), "Meus Irmãos" (O Chamado, 1994) e "$Cara" (Próxima Parada, 1989). Mas não há o menor resquício de nostalgia nessas três, nem no restante do trabalho: a sonoridade é contemporânea, vigorosa - com belas guitarras (quase sempre pilotadas pelo craque Fernando Vidal) e boas programações eletrônicas. Marina Lima está olhando para frente, em direção ao futuro.

Que ninguém a convide para nenhum revival.

A faixa que abre o CD já dá a senha: "Três" tem um quê de tango - só que reprocessado, no melhor estilo Piazzola from hell, em que a cantora entrega o mote do trabalho: "não há lugar para lamúrias (...)/ mas por que não nos reinventar?". "Valeu", a segunda música do disco é (acredite)... uma ciranda nordestina (!) - ainda que eletrônica, claro.

Recentemente, Marina declarou: "a música é matemática; inspiração é para os leigos". De fato: apesar de trazer o calor que sempre caracterizou seu trabalho ("eu tenho febre, eu sei..."), tudo aqui soa como se fosse minuciosamente raciocinado - nada por acaso. E ainda há espaço para a ironia: em "Vestidinho Vermelho", versão de Alvin L. para "Beautiful Red Dresses" de Laurie Anderson, e em "Anna Bella", co-escrita com seu irmão Antônio Cícero ("por que as mulheres também não podem ter a sua sauna gay?").

Marina ainda gravou "Dura na Queda", samba que Chico Buarque compôs para Elza Soares, registrado pelo autor pela primeira vez em Carioca, CD desse ano.

Sei que você deve estar se perguntando: "mas, afinal... e a voz dela"? Bem, a intérprete de agora não é mais aquela de outrora. Pode-se dizer que, com astúcia, a cantora criou para si um outro estilo, mais contido - eventualmente recitado, até - de cantar. E tem se saído bem.

O bom Lá nos Primórdios é o disco pelo qual o seu público aguardou desde [abrigo] - álbum de canções alheias lançado há exatos onze anos. E receber Marina Lima de volta (parafraseando suas próprias palavras) reinventada, depois de todo esse tempo ... é uma bela notícia.

Paul McCartney: um Beatle na night?

Vinil e download pago Twin Freaks (Parlophone)
2005


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 125 (setembro de 2006).



Sinceramente, chega a ser uma injustiça, a essa altura, o fato de alguém acreditar na imagem artística foi criada para Sir Paul McCartney: o beatle romântico, de semblante doce, com cara de bom genro. É incrível pensar que ainda exista quem desconheça que foi ele, e não Lennon, quem criou o revolucionário conceito de Sgt. Peppper's, por exemplo; e que, sendo o único solteiro da banda naquele período, se relacionava com artistas de todas as áreas na Swinging London, etc. e tal.

McCartney muitas vezes subverteu as regras do jogo - e, na verdade, ainda continua o fazendo. Prova disso é Twin Freaks, concebido em parceria com o DJ e produtor londrino Roy "The Freelance Hellraiser" Kerr, lançado em junho do ano passado - meses antes de seu último álbum de inéditas, o confessional Chaos and Creation in the Backyard - apenas em vinil 12" duplo ou em formato digital (leia-se: download pago). Por enquanto, nada de CD (embora estivesse prometido para o início de 2006). Os dois se conheceram na turnê de Macca do verão de 2004, e Kerr, a partir de então, passou a realizar um set de abertura de 25 minutos nos shows, somente com músicas do ex-beatle, remixadas.

Algo semelhante já havia sido feito por Paul anteriormente, em parceria com Youth, no projeto The Firemen, que rendeu os álbuns Strawberries Oceans Ships Forest (1993) e Rushes (1998). Esses dois trabalhos, no entanto, traziam faixas eletrônicas instrumentais, estilo ambient. Twin Freak é uma empreitada mais radical, porque apresenta remixes de faixas de sua carreira solo, feitos sob encomenda para... as pistas! Ou seja: o cara - já um sexagenário - não teve a menor arrogância em permitir a desconstrução das próprias canções. E ele não é qualquer um.

Ele é o Paul McCartney, ora.

E isso serve de lição para as primas-dona da música (no Brasil, então, há dezenas delas): viram só? Aprendam com o mestre.

Claro, talvez Paul não chegasse a ponto de remixar uma "Band on the Run" ou uma "Jet". As faixas são, em sua maioria, obscuras - como "Rinse the Raindrops" (de Driving Rain, 2001). Mas, ainda assim, três hits estão presentes no álbum: "Coming Up", "Maybe I'm Amazed" (em remix respeitoso ao fonograma lançado em McCartney, 1970) e "Live and Let Die", esta última, absolutamente irreconhecível (da letra original, apenas o verso inicial, que se repete como um mantra: "...when we were young...". Nada mais).

Em vários momentos, foram usados samplers de outras canções de McCartney, o que torna a coisa bastante curiosa. Por exemplo: em "Long Haired Lady", de Ram (1971) foi criado um loop do riff de guitarra de "Oo You" (outra faixa oriunda do primeiro disco solo de Paul). "Really Love You", de Flaming Pie (1997), que abre o CD, se apropria da bateria de "What's That You're Doing" (Tug of War, 1982) - que, aliás, também está incluída no álbum (inclusive com a participação original de Stevie Wonder nos vocais). E "Oh Woman Oh Why", lado B de "Another Day" (1971) traz os vocais de "Venus and Mars" e a guitarra da supracitada "Band on the Run".

Vale prestar atenção na debochada "Temporary Secretary", em versão melhor que a original (de McCartney II, 1980, de onde saiu também "Darkroom", um dos remixes mais interessantes). E ainda há uma faixa inédita: "Lalula".

A verdade é uma só: ainda que valha pela ousadia, Twin Freaks, em alguns momentos, pode (e vai) assustar o beatlemaníaco mais tradicional. Em todo caso, para quem se interessar, o endereço para download é:

http://www.7digital.com/shops/productDetail.aspx?shop=72&product=11570&sid=77110.

Ah, sim: cada canção custa a módica quantia de £ 0.99 (noventa e nove centavos de libra esterlina).

Ed Motta: que bom voltar


CD Ao Vivo (Trama)
2006

Resenha publicada no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 125 (setembro de 2006).




Dois anos após o seu lançamento em DVD, Ed Motta ao Vivo recebe agora, na íntegra, a sua versão em CD duplo, via Trama. Gravado no Directv Music Hall, em São Paulo, o show divulgava o álbum Poptical, o primeiro trabalho do cantor após sua saída da gravadora Universal. No ano passado, Ed lançou o seu mais recente álbum de inéditas, o elaborado Aystelum.

Acompanhado por uma banda enxuta, porém afiada - apenas bateria, baixo, guitarra (quase sempre com boas intervenções de talking-box) e teclados - Ed revisa toda a sua carreira, desde os tempos do Conexão Japeri, (com "Manuel", "Vamos Dançar" e "Baixo Rio"), passando por Um Contrato Com Deus ("Solução"), pelo incompreendido Entre e Ouça (a faixa-título), pelos dois volumes do Manual Prático (a ótima "Vendaval", "Falso Milagre do Amor", o samba-jazz "Dez Mais um Amor", "Fora da Lei" e a bela "Outono no Rio", entre outras) até chegar ao supracitado Poptical ("Minha Casa, Minha Cama, Minha Mesa", "Coincidência", a ótima "Que Bom Voltar", e outras mais), numa apresentação refinada, na qual ele mostra que porque é, de fato, uma avis rara - dono de uma das musicalidades mais completas do cenário nacional.

Além de multi-instrumentista (na apresentação, chegou a tocar teclado e guitarra), Ed não economiza na performance vocal, interagindo muito bem com a platéia. E vale registrar a participação especial da talentosíssima cantora e pianista Tânia Maria - de quem o anfitrião confessou, em pleno palco, ser grande admirador. Radicada há muitos anos nos Estados Unidos, Tânia deu um verdadeiro show de técnica na instrumental "Funky Tamborim", de seu repertório.

Ed Motta havia lançado, em 1993, um outro álbum gravado durante um show. Contudo, até o prezado momento, a dobradinha CD + DVD Ed Motta ao Vivo é o registro definitivo do cantor em cima de um palco. E, para quem quiser adquirir o pacote completo, vale lembrar que o audiovisual traz, como extras, os clips de "Colombina" e "Tem Espaço na Van", além de um documentário minucioso das gravações de Poptical.

Jay Vaquer: o pop nacional tem jeito

CD Você Não me Conhece (EMI)
2006

Resenha publicada no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 125 (setembro de 2006).



O cantor, compositor e produtor Jay Vaquer é filho do homônimo guitarrista americano que foi parceiro de Raul Seixas e sua mãe é a cantora (de lindo timbre, diga-se de passagem) Jane Duboc. Participou em 2000 do musical Cazas de Cazuza - cuja trilha sonora virou CD, via Som Livre - e havia lançado dois CDs solo: Nem Tão São, 1998; e Vendo a Mim Mesmo, 2004. Seu terceiro trabalho, intitulado Você Não me Conhece (EMI) foi lançado no final do ano passado e é lamentável que, até o prezado momento, não tenha tido, na mídia de um modo geral, a merecida repercussão. Sim, porque o seu conteúdo é... surpreendente.

Se Lulu Santos viesse a escutar esse disco (que teve excelente produção do baixista Dunga, que cuidou também das programações eletrônicas), provavelmente se sentiria orgulhoso. Quase 25 anos de bons serviços prestados à causa do pop desse país retornam para ele dessa forma: na certeza da consolidação de um estilo, de uma formatação. E também na observação de sua influência em vários momentos de um produto tão consistente.

E já se pode dizer que o jovem e promissor Jay manipula bem essa linguagem: quase tudo aqui é radiofônico, de fácil assimilação, mas em nenhum momento ralo, raso, descartável. E, ainda por cima, ele canta bem pacas.

Certa vez, alguém disse que, para se dominar a canção popular - ou seja, para conceber uma melodia que grude no ouvido e possa ser assoviada por um número expressivo de pessoas - é necessário (ao contrário do que muita gente, erroneamente, imagina) um grande conhecimento dos cânones musicais.

Verdade.


"Às vezes, me sinto nomeado interino de Deus... "

E esse saber, essa confiança transparecem em Você Não me Conhece. Ouça a balada "O Tal do Amor (8 e 80)" e belisque-se para crer. Nos três minutos dessa faixa, sensibilidade e técnica caminham lado a lado - e por que não? A mesma boa impressão é causada por "A Falta que a Falta Faz", que abre os trabalhos.

A pulsante "Cotidiano de um Casal Feliz" - cujo clip teve alta rotatividade na MTV - arranca a fórceps e expõe, com seus versos diretos, as mazelas ocultas no útero familiar da classe média carioca (drogas, adultério, pedofilia, abuso de poder econômico, racismo, desinteresse cultural, automatismo religioso, frivolidade e afins):

"Ele manda em tudo, em todos, curte seu poder
e deixa a esposa em casa pra brincar no treco de qualquer traveco,
em troca de prazer -
vai saber porquê... (...)

E eles têm escravos, disfarçados de assalariados

diariamente humilhados,
se levantam cedo,
se arrumam apressados

têm hora marcada pra falar com Deus. (...)

Ele guarda no H.D. fotos de crianças nuas,
pra tirar um lazer -
curte ver aquilo quando fica só;
ela conta os passos que dá no trajeto

entre a terapia e a boca do pó.


E até pensa em adotar alguma criatura:

pode ser uma criança ou um labrador -
só depende da raça, depende é da cor...


o que pintar primeiro...".

Aliás, além da fluência pop do trabalho, o quesito letra merece uma menção à parte: há muito tempo não se observa uma preocupação lírica tão evidente. Não há a menor dúvida: Jay Vaquer é um letrista bem acima da média. Em "Campo Minado", ele até sacaneia: "Não me diga que não tenho consideração/ se até me esforço na tentativa de escutar/ suas frases bestas, soltas pra "impactar"/ num estilo Caetano-de-saia/ que tem o dom de alugar... ".

Outros destaques são: a ótima "Quando Fui Fred Astaire", a visceral faixa-título, "Na Próxima Vez", e a barroca "Paredes", que fecha o CD.

Bem, nada está perdido. Torçamos para que Você Não me Conhece ainda venha a ter melhor sorte. O pop nacional merece.

Milton Nascimento solta a voz em coletânea

CD Perfil (Som Livre)
2006


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 125 (setembro de 2006).



Depois de grandes nomes como Chico Buarque, Zélia Duncan, Gilberto Gil, Zé Ramalho, Caetano Veloso, Fábio Jr e Paralamas do Sucesso (os três últimos comentados recentemente aqui no IM - INTERNATIONAL MAGAZINE), chega a vez da voz límpida de Milton Nascimento na série de coletâneas Perfil (Som Livre).

E o repertório traz o que se espera de uma compilação de Bituca: "Canção da América" (com participação do Boca Livre), "Nos Bailes da Vida" (gravada com o Roupa Nova), a bela "Caçador de Mim", "Coração de Estudante", a ancestral "Travessia", "Maria Maria" e "Para Lennon & McCartney", entre outras.

As duas surpresas do repertório são a pop "Quem Sabe Isso Não Quer Dizer Amor?" (de Márcio e Lô Borges, originalmente lançada no último álbum de inéditas de Milton, o bom Pietá, 2003); e uma rara versão de "Encontros e Despedidas", com participação de Zezé Motta, feita para a trilha do balé O Último Trem, do Grupo Corpo. Dentro desse ponto de vista, uma ótima idéia seria a inclusão da linda "Tristesse" (também de Pietá), dueto de Milton com Maria Rita - e também gravada por Beto Guedes com Paula Toller em Dias de Paz, 1998.

Para os neófitos no trabalho de Milton Nascimento, Perfil assegura uma boa iniciação. Entretanto, para quem deseja se aprofundar na obra do cantor, a sugestão é o fundamental Clube da Esquina (1972), do qual, aliás, saíram várias faixas dessa coletânea: "Cais", "Tudo o que Você Podia Ser", "Nada Será Como Antes" e "Clube da Esquina, II". Gravado em parceria com o já mencionado Lô Borges (com a colaboração de nomes de peso como o supracitado Beto Guedes, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Toninho Horta, Tavito e muitos outros), Clube... é um dos melhores discos já editados nesse país e permanece ainda relevante e celebrado - exercendo, até os dias atuais, saudável influência em gente boa como o Skank, por exemplo.

Almir Sater e o Brasil profundo

CD Um Violeiro Toca (Som Livre)
2006

Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 125 (setembro de 2006).



Sem lançar um álbum de inéditas há dez anos - o último foi Caminhos me Levem - o cantor, compositor, ator bissexto (atualmente faz parte do elenco da novela Bicho do Mato) e virtuoso da viola caipira Almir Sater se encontra em estúdio gravando um CD que contará com a participação de Dominguinhos. Enquanto isso, chega ao mercado uma coletânea com os maiores sucessos de seus 25 anos de carreira: Um Violeiro Toca (Som Livre).

Natural do Mato-Grosso do Sul e parceiro do grande Renato Teixeira, Almir Sater fala com propriedade (a exemplo do autor e intérprete de "Romaria", célebre na voz de Elis Regina; e "Frete", tema de Carga Pesada) das coisas da terra, da gente do campo. O músico, aliás, é um raro exemplo autor que vive aquilo que canta: mora atualmente numa fazenda no Pantanal Mato-Grossense.

Com uma poesia simples - mas de grande sensibilidade - Sater nos conta histórias da roça em forma de canções, como em "Chalana", "Varandas", a bela "Peão" ("diga, você me conhece?/ Eu já fui boiadeiro/ conheço essas trilhas, quilômetros, milhas..."), "Sodade Matadeira"e a faixa-título, co-escrita com o já mencionado Renato Teixeira:

"Quando uma estrela cai, no escurão da noite,
e um violeiro toca suas mágoas,
então os
óios dos bichos vão ficando iluminados
rebrilham neles estrelas de um sertão enluarado.

Quando um amor termina, perdido numa esquina,
e um violeiro toca sua sina,
então os
óios dos bichos vão ficando entristecidos
rebrilham neles lembranças dos amores esquecidos...
"

E, especialmente em "Estradeiro", "Rasta Bonito" e na instrumental "Doma", Almir Sater (que foi aluno do mestre Tião Carreiro, da dupla com Pardinho) mostra a notável técnica que fez com que fosse considerado um dos mais habilidosos músicos das dez cordas. Destaque também para a sua versão para a brejeira e antiqüíssima "Cabecinha no Ombro".

Para quem deseja conhecer e compreender as raízes do País (o chamado "Brasil profundo", como alguém disse, há algum tempo), Um Violeiro Toca certamente pode dar um bom auxílio.

Titãs: 20 anos de "Cabeça Dinossauro"


CD Cabeça Dinossauro (Warner)
1986

Artigo publicado no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 124 (agosto de 2006).




Já foi lembrado que o seminal Selvagem?, dos Paralamas do Sucesso (o disco que se tornou um paradigma de brasilidade no pop nacional) está completando duas décadas de lançamento em 2006. Entretanto, há um trabalho - tão representativo quanto este - que também foi editado há exatos 20 anos, e que merece igual registro: Cabeça Dinossauro (Warner), dos Titãs .

Na ocasião, o grupo paulistano já vinha de dois trabalhos (Titãs, 1984; e Televisão, 1985, produzido por Lulu Santos) os quais - apesar de hits como "Sonífera Ilha", "Toda Cor" e "Insensível" - deixavam, com seu instrumental difuso, a impressão clara de que a banda carecia de... foco. E aí reside a importância de Cabeça... na carreira dos Titãs. Até então, a banda, com um visual esdrúxulo, se apresentava em programas popularescos da época (como Barros de Alencar, por exemplo) e acabava sendo colocada um tanto à margem de seus contemporâneos do rock brasileiro.

Muito bem produzido por Liminha (que, por coincidência - ou não - produziu também Selvagem?), Vítor Farias e Pena Schmidt (o produtor do já mencionado primeiro álbum dos Titãs), o disco começa a surpreender já na parte gráfica, de concepção do vocalista e tecladista Sérgio Britto. Nada de tradicionais fotografias da banda: capa e contracapa exibiam figuras grotescas, quase animais, fidelíssimas ao título do trabalho. Mas, para quem imaginava que essas imagens foram extraídas de alguma revista de quadrinhos de terror, o encarte informava que as mesmas eram de autoria de ninguém que Leonardo da Vinci, e seus originais estavam expostos no renomado Museu do Louvre, na França.

E, do ponto de vista musical e lírico, Cabeça... foi o grande cavalo-de-pau na trajetória do então octeto: com uma sonoridade visceral (flertando eventualmente com o reggae e o funk), os Titãs realizaram a crônica da perplexidade e da fúria do homem diante do mundo ao seu redor e, dessa forma, expuseram conceitos contundentes a respeito de instituições familiares ("Família"), de segurança ("Polícia", que recebeu, anos depois, uma violenta versão do Sepultura), religiosas ("Igreja") e governamentais ("Estado Violência"), além de petardos como a punk "A Face do Destruidor", "Bichos Escrotos", "Porrada", "Tô Cansado", e o refrão onomatopaico de "AA UU".

A tribal faixa-título trata-se de uma adaptação do Cerimonial Para Afugentar os Maus Espíritos, dos Índios do Xingu (!). E em "Homem Primata", há a constatação de que, milhares de anos após o Paleolítico, o homem não havia evoluído da sua condição de... símio.

O engenho concretista de Arnaldo Antunes (que deixou a banda nos anos 90) aparece em "O Que", o qual, apesar da letra minúscula ("Que não é o que não pode ser/ Que não é/ O quê?") foi transformada em um legítimo funk mega-dançante.

A distorção de Cabeça.. tornou-se, desde então, um parâmetro para a sonoridade dos Titãs, que - não por acaso - regravaram, em 1988, em Go Back (registrado ao vivo durante o conceituado Festival de Montreux, na Suiça), várias canções de seus dois primeiros álbuns, porém com arranjos atualizados.

Cabeça Dinossauro permanece em catálogo e a verdade é que seu som não datou. Para as novas gerações, vale a pena conhecer esse clássico do rock nacional, que foi o embrião de trabalhos fundamentais na obra dos Titãs como Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas (1987), o supracitado Go Back, Õ Blésq Blom (1989) e Titanomaquia (1993), e certamente exerceu inegável influência sobre músicos que surgiram posteriormente. O resto é história.

Jamie Cullum no horário nobre

CD Catching Tales (Universal)
2005


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 124 (agosto de 2006).



Até o início de Belíssima, pouco se falava no Brasil a respeito do cantor, compositor, pianista e guitarrista inglês Jamie Cullum - ainda que um outro trabalho seu já tivesse sido lançado por aqui (Twentysomething, 2004). Mas bastou que a parte internacional da trilha sonora da novela começasse a ser executada para que uma canção logo se destacasse: o irresistível pop de "Mind Trick", que acabou chamando a atenção para o álbum no qual está contida.

Faixa de Catching Tales, que também possui uma edição nacional (via Universal), "Mind Trick" passou também a ter boa execução nas rádios brasileiras. E nem poderia ser diferente: trata-se de uma canção popular que contém todos os predicados que caracterizam uma grande canção, na acepção da palavra - bela melodia, harmonia elaborada, refrão eficaz, arranjo bem concebido. O exemplo clássico de música que se ouve uma vez, e outra, e outra... sem cansar. Desde já uma fortíssima candidata a melhor música internacional de 2006 - ainda que o álbum tenha sido lançado no ano passado.

O curioso, entretanto, é que "Mind..." não reflete exatamente o contexto do álbum - exceção feita também a "Our Day Will Come". O CD trafega, na verdade, dentro de uma estética de jazz moderno, algo entre Norah Jones e Harry Connick Jr.

Entre canções autorais inéditas, Cullum desfila técnica, bom gosto e refinamento. E ainda se arrisca em cantar um clássico gravado por meio mundo (de Louis Armstrong a Bing Crosby, passando por George Benson, Ella Fitzgerald, Ray Conniff, Richard Clayderman, e até Caetano Veloso - em A Foreign Sound, 2004): "I Only Have Eyes For You". E não é que Cullum se saiu bem?

"Nothing I Do" e "21st Century Kid" ficariam perfeita na voz de Michael Bublé, por exemplo. Destaque também para "Photograph", "My Yard", "Catch the Sun", e a bela "London Skies". Enfim, independentemente de qualquer folhetim, Catching Tales é um álbum de classe - e merece ser ouvido.

Morrissey e Ennio Morricone?

CD Ringleader of the Tormentors (Attack-Sanctuary/ Trama)
2006


Resenha publicada no jornal
IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 124 (agosto de 2006).



Nos anos 80, durante o período áureo dos Smiths (época de hits como "Ask", "There Is A Light That Never Goes Out" e a linda "Heaven Knows I'm Miserable Now"), nem o mais delirante apreciador de música poderia imaginar que o vocalista da lendária banda de Manchester um dia colaboraria com o genial maestro italiano Ennio Morricone, possivelmente o maior autor de trilhas para cinema de toda a história da sétima arte - tendo assinado centenas delas.

Porém, no século XXI, o imprevisível aconteceu: Morrissey e Morricone uniram forças em "Dear God Please Help Me", faixa de Ringleader of the Tormentors, oitavo disco solo do bardo inglês (sem considerar os álbuns gravados ao vivo: Beethoven Was Deaf, 1993; e Live at Earls Court, lançado no ano passado). E não é o resultado ficou bastante satisfatório? As cordas de Morricone adornam uma canção onde Morrissey se mostra algo... religioso (!).

O início da carreira solo de Morrissey foi marcada por discos aquém de sua reputação, como Viva Hate (1988) e Kill Uncle (1991) - ainda que emplacasse hits como a pop "Suedehead" e a bela e melancólica "Everyday Is Like Sunday". Durante algum tempo, ele foi considerado um has been - um artista... acabado. Até que, em 1992, lançou Your Arsenal, aclamado pela crítica, que gerou o já mencionado ao vivo Beethoven Was Deaf.

Mais três álbuns apenas regulares - Vauxhal And I (1994), Southpaw Grammar (1995) e Maladjusted (1997, que gerou um quase-hit, a boa "Alma Matters") - deixavam a impressão de que o poeta inglês tornara-se de fato um item de antiquário da Rua do Lavradio. Eis que, para surpresa geral, Morrissey edita em 2004 pela Attack/Sanctuary o visceral You Are The Quarry, no qual recupera em definitivo a velha forma.

Gravado em Roma (onde Morrissey mora atualmente) e produzido por Tony Visconti - que produziu trabalhos lendários de David Bowie e T. Rex -, Ringleader... confirma a boa fase e mostra, entre letras brilhantes, momentos reflexivos (como a ótima "Life is a Pigsty") e outros ásperos ("You Have Killed Me", o primeiro single), um artista sem o menor sinal de cansaço. A faixa que abre o CD, "I See You in Far off Places" evoca na introdução um clima arabesco, assumindo depois uma atmosfera caótica, hipnótica. "The Youngest Was the Most Loved" apresenta... um coral infantil (!) - também presente no arranjo algo épico de "At Least I Am Born", que fecha a bolacha.

O disco inteiro soa tão bem que apontar destaques torna-se uma tarefa até injusta. Se a intenção de Morrissey é recuperar o prestígio dos tempos dos Smiths, ele está no caminho certo. Ringleader of the Tormentors, não deve absolutamente nada para os melhores trabalhos gravados com o seu ex-grupo. E não há exagero nessa afirmativa.

Maria Rita: reconsiderações

CD Segundo (Warner)
2005

Resenha publicada no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 124 (agosto de 2006).



Reconheçamos todos que a crítica musical, por vezes, é injusta. Porque, sendo notícia, possui a mesma urgência das que preenchem os cadernos policiais, esportivos ou de economia. Contudo, em se tratando de música - ou de arte, de um modo geral -, eventualmente pode existir uma certa demanda de tempo para que um determinado trabalho seja avaliado, compreendido. E apreciado.

Por essa razão, lanço agora um desafio: quem nunca cometeu um equívoco de julgamento - para o bem ou para o mal - que atire a primeira pedra.

Um dos mais crassos erros na história recente da música brasileira envolve Maria Rita Mariano. Todos sabemos a responsabilidade que existe acerca do segundo disco de qualquer artista - especialmente no caso da cantora, cujo trabalho de estréia revelou-se um blockbuster de notáveis proporções. E a "especializada" recebeu Segundo (este é, sintomaticamente, o título do CD) com artilharia pesada. De fato, o seu primeiro álbum era superior. Entretanto, meses após o seu lançamento, ressuscitemos o assunto e coloquemos os pingos nos is - até mesmo por uma questão de caráter.

Com todas as suas possíveis falhas, trata-se de um disco bem melhor do que muitos da chamada "MPB contemporânea". Não se pode negar o talento da cantora e, sobretudo, sua coragem - em vez de utilizar os préstimos de um autor do calibre de um Milton Nascimento, por exemplo, ela abre os trabalhos com duas canções do novato Rodrigo Maranhão (vocalista do Bangalafumenga e ex-integrante do Monobloco): a bela "Caminho das Águas" e o samba "Recado", que não faria feio na voz de sua famosa mãe. Também de autoria de Maranhão é a faixa escondida, "Mantra", que fecha o CD.

É bem verdade que o registro de Maria Rita para "Sobre Todas as Coisas" (de Edu Lobo e Chico Buarque) está aquém da versão de Zizi Possi - a canção até batizou o disco que a intérprete de "Per Amore" editou em 1991 - e também da gravação bluesy do próprio Chico (no CD Paratodos, 1993), com suas guitarras (!) lancinantes. Assim como a sua versão de "Minha Alma (A Paz que Eu Não Quero)" nada acrescenta à canção d'O Rappa. Mas Segundo tem muitos pontos favoráveis. Muitos.

E um deles é a boa "Mal Intento", do uruguaio Jorge Drexler, compositor que até Oscar já ganhou (a despeito da grosseria da organização da cerimônia em NÃO convidá-lo a apresentar a canção vencedora, "Al Outro Lado Del Río" - por tratar-se de um "desconhecido para o público norte-americano"). Lamentável. Houve, na imprensa brasileira, quem criticasse a gravação de Maria Rita - mas talvez isso seja decorrente daquele lamentável conceito: "se bunda falasse, falaria Espanhol...". Mas isso é assunto para um outro artigo.

O destaque do CD, no entanto, é a linda "Casa Pré-fabricada", do repertório dos Los Hermanos (lançada pela banda no ótimo Bloco do Eu Sozinho, 2001). Com o todo o respeito aos talentosos barbudos - e eles, inequivocamente, o merecem - , mas a voz da cantora realçou nuances da melodia que ficaram obscuros na gravação do quarteto carioca, criando um número soberbo, verdadeiramente tocante.

Eventualmente, fica a impressão de que a questão é... er, pessoal. Sim, porque, eventualmente, a coisa invade o território extramusical: por exemplo, na temporada de lançamento de Segundo, no Canecão (RJ), muitos cometeram a deselegância de achincalhar... o vestido que a cantora usava.

Coisa desagradável. E o que isso tem a ver com música?

Se, por um lado, o código genético que Maria Rita carrega é uma honra, por outro... deve ser um fardo. Afinal, estamos falando da maior cantora que esse país já teve - permanecendo, 23 anos após seu desaparecimento, imbatível em técnica vocal, habilidade histriônica e escolha de repertório. Mesmo que exista quem afirme, num arroubo de iconoclastia pré-adolescente, que Elis Regina "é um dos produtos mais supervalorizados da cultura nacional", devendo ficar "na cristaleira, junto com as porcelanas da vovó".

E somos obrigados a ler isso.

Mas o fato é que Maria Rita, nas entrevistas, se mostra... digamos, um tanto desconfortável com a (indiscutível) influência de Elis em seu estilo, gestual, voz, etc. - desconforto esse que acaba soando.... indelicado. Ora, por que o mal-estar por algo tão... evidente?

Talvez um profissional experiente poderia auxiliá-la a tratar essa questão de maneira um pouco mais... astuta e ponderada. Entretanto, se é realmente verdade o que se noticiou recentemente - que, no final, é a cantora "que decide tudo" - então... paciência.

Ou será que Segundo ficou estigmatizado por causa de uma infeliz estratégia de marketing da gravadora (o famoso episódio dos iPods dados de presentes para os críticos)? Fica a impressão de que, quem recebeu o aparelho, detonou o trabalho por se sentir "aviltado em sua integridade" (oh...). E quem não recebeu o presentinho... falou mal do CD porque ficou... na bronca - pela exclusão, claro.

Situação complicada.

Bem, mas o importante é que Maria Rita é jovem, e ainda tem um longo caminho pela frente e meu palpite é que ela ainda vai encontrar seu próprio estilo. E não se pode negar que a garota é do balacobaco.

E, queiram ou não, veio para ficar.



TOM NETO assegura que esse artigo não foi estimulado por nenhuma espécie de... gratificação eletrônica....

sábado, 3 de fevereiro de 2007

Marcelo D2: qual é?


CD Meu Samba é Assim (Sony BMG)

2006

Resenha publicada no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 123 (julho de 2006).




Direto ao ponto: três anos após o seu último CD inédito, À Procura Da Batida Perfeita (nesse intervalo, rolou CD + DVD Acústico MTV), Marcelo D2 volta à cena com Meu Samba É Assim (Sony/BMG).


Colaborar com João Donato deve ter feito bem ao rapper, porque, de imediato, percebe-se que o álbum umas bases maneiras - como "Pra Que Amor?" (com participação da Marrom Alcione), "Nega", "Sinistro" e "É Assim que se Faz" (a melhor do CD), onde ele ensina como mandar aquele agá ixperto. Além disso, a audição de velhos vinis de MPB possivelmente contribuiu - dessa fonte, deve ter surgido a inspiração para refrões bem brasileiros e a escolha de instrumentos incomuns em um disco de rap, como piano em "É Preciso Lutar"; trompete em "Lapa"; e flauta em "Nunca Esquecer". "Dor De Verdade", de autoria de Arlindo Cruz - com a participação do próprio e do bamba Zeca Pagodinho - é o autêntico samba-esquema-novo.

Pode crer: a mistura de hip hop com samba dá a maior liga mesmo - isso ninguém pode negar - e pode ser entendida como uma atualização da malandragem carioca na música contemporânea. E tem outra parada: só otário não reconhece que Marcelo D2 verbaliza legal a sua sagacidade de rua. O cara - sabe-se lá Deus como - conseguiu criar um estilo próprio e essa foi a sua sorte. Porque é justamente o que o diferencia e o identifica. Vamos combinar: ele é bom naquilo que faz. Mas será que isso justifica tanta marra?

A despeito do insight da alquimia sonora, para muita gente, a existência artística de Marcelo D2 é um completo... mistério. Não é caso de entrar no mérito dessa questão, mas o fato é fora das quatro linhas... vez ou outra, ele dá uns moles.

O cara chega no VMB da MTV para receber uma premiação e expõe para platéia e câmeras toda a sua singela comoção: "do caralho, do caralho, do caralho!". Ou seja: quer vender atitude, mas, ao mesmo tempo... canta para os bacanas de Sampa, se apresenta na final do BBB (onde Pedro Bial se referiu ao pesadelo da pop como "Mestre D2". Então 'tá...), é contratado de uma multinacional, faz comercial de celular e ainda cria uma grife - que expandirá brevemente a sua atuação para os segmentos feminino e... infantil? Ah, ô, fala sério, malandro. Qual é?

Todo mundo que se preza um dia já foi "rebelde", usou cabelos sobre os ombros, coisa e tal. Mas ficar eternamente nisso é sintoma de adolescência tardia, pura síndrome de Peter Pan. O amadurecimento, portanto, é uma tendência natural do ser humano. Por outro lado, continuar sendo porra-louca também é um problema de cada um - desde que o cara seja coerente em seu posicionamento... paciência. Desagradável mesmo é quando o cara se torna um capitalista... mas finge que não - como o velho arquétipo fake do punk de butique.

Nas entrevistas de divulgação de Meu Samba É Assim, D2 afirmou que a MPB "é uma merda". Tudo bem - exceção feita a Chico Buarque, Lenine, Marisa Monte, Zélia Duncan e mais alguns poucos - , a MPB realmente não está lá muito bem das pernas. Mas... merda, Show? Só pode estar de neurose.

Em entrevista recente, teve coragem de citar a antiga teoria de Tom Jobim (vejam só), para dizer que quem fala mal de seu sucesso é "ressentido". E, em "Falador", ele se apropria de frase de pára-choque de Kombi da Avenida Dom Hélder Câmara: "falar de mim é fácil/ difícil é ser eu".

Caro(a) leitor(a), quando você estiver lendo esse artigo, D2 já terá feito uma mini-turnê pela Europa (com Rock In Rio Lisboa incluído) e uma apresentação no tradicional Festival de Montreux, a convite de ninguém menos que Sérgio Mendes - além de ter participado do último álbum do craque, Timeless. Verdade seja dita: consolidado, o trabalho do cara está, morou? Mas, tirando isso... presta atenção, rapá...

Paralamas: foi um longo caminho até aqui

CDs Perfil - Vol. I & II (Som Livre)
2006

Resenha publicada no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 123 (julho de 2006).



O que mais dizer a respeito dos Paralamas do Sucesso a essa altura do campeonato - visto que o grupo já alcançou o status de instituição do rock nacional, não comportando qualquer tipo de questionamento com relação à perenidade de sua obra? Em suma: os caras (a exemplo dos Titãs) são hors-concours. Em função disso, a Som Livre dedica ao trio um título de sua série Perfil, e com uma deferência toda especial: pela primeira vez nessa coleção, é lançada uma coletânea dupla, com os dois volumes vendidos separadamente.

Os Paralamas, todos sabem, ajudaram a sedimentar uma linguagem nativa no pop brasileiro (o qual - é bom frisar - teve seus primeiros lampejos, na verdade, antes mesmo da Jovem Guarda, ainda que muita gente não observe isso), ao lado de outros artistas igualmente surgidos na década de 80, como a Blitz, o Barão Vermelho, Ritchie, entre tantos outros. O segundo álbum da banda, o célebre O Passo do Lui (1984), parece uma compilação de singles de sucesso - quase todos presentes aqui: "Óculos", "Meu Erro", "Romance Ideal", "Me Liga" e "Fui Eu". Em 1986 (completando, portanto, 20 anos de lançamento este ano), é editado Selvagem?, o trabalho que definitivamente imprimiu em tons nada pastéis a brasilidade no rock produzido em nosso país, de onde saíram: "A Novidade" (letra do Ministro Gilberto Gil), "Alagados" (com a participação do próprio Gil nos vocais), "Você" (do saudoso Síndico Tim Maia) e "Melô do Marinheiro", todas devidamente inseridas em Perfil.

O grupo atravessou um momento de baixas vendagens na primeira metade dos anos 90 com o injustiçado Os Grãos, 1991 (que trazia o reflexivo soft reggae "Tendo a Lua" e a otimista "Sábado"), e o experimental Severino, 1994. Mas retomou o passo (dessa vez, não o do Lui) ao abraçar novamente o pop em 1995, com o visceral ao vivo Vamo Batê Lata (que, finalmente, recebeu esse ano versão em DVD, mostrando o monstro que os Paralamas são em cima de um palco), além de quatro inéditas dignas do melhor da banda.

E Perfil, em seus dois CDs, resume, ainda que fora de ordem cronológica, toda a trajetória da banda - com exceção do mais recente álbum de inéditas, o bom Hoje, lançado no ano passado. Além das canções supracitadas, o repertório conta ainda com "Cuide Bem do Seu Amor", a intensa e subjetiva "Uns Dias", "Lanterna dos Afogados" (gravada também, há nove anos, por ninguém menos que Gal Costa, em dueto com o próprio Herbert Vianna, na série Acústico MTV), "Quase Um Segundo" (que recebeu uma versão de Cazuza em Burguesia, seu último disco), "O Amor Não Sabe Esperar" (com participação de Marisa Monte nos vocais), as sensíveis "Aonde Quer que Eu Vá" e "Seguindo Estrelas", a pet sounds "Busca Vida", e muito mais. Enfim, um set-list para ninguém botar defeito - e olha que ainda ficou bastante material de fora (sem contar as pérolas obscuras)...

Sobrevivendo às reviravoltas do mercado e a tragédias pessoais, os Paralamas do Sucesso jamais perderam a relevância. E Perfil apenas vem documentar isso.

Chico Buarque: "Cidade Maravilhosa, és minha..."

CD 
Carioca (Biscoito Fino)
2006 


Resenha publicada no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 123 (julho de 2006).





O mais recente CD de canções inéditas de Chico Buarque, o excelente As Cidades, foi lançado em... 1998. Isso não significa, contudo, que o artista esteve ocioso: neste hiato, Chico lançou um álbum gravado em sua última turnê (Chico ao Vivo, duplo, 1999); uma trilha para teatro (Cambaio, 2001, em parceria com Edu Lobo); dois DVD's ao vivo (Chico e as Cidades, 2001; e O País da Delicadeza Perdida, 2003); um livro (o ótimo romance Budapeste, 2003) e três caixas de DVD's - cada qual contendo três títulos - com documentários e clips extraídos de apresentações na TV.

De qualquer forma, Carioca - o seu primeiro lançamento pela gravadora Biscoito Fino - vem, portanto, dar fim a qualquer indício de... (para usar um termo moderno) jejum. O trabalho inteiro soa como uma suíte de versos (lúcidos: ora críticos, ora exultantes) e sons referentes à Cidade Maravilhosa - daí o título do álbum ser mais do que adequado. E é interessante observar a recorrência do tema em sua obra: o disco anterior era iniciado por uma bela canção também intitulada... "Carioca".

Em entrevista recente, Chico afirmou que "não apenas no disco, mas também nas entrevistas, levanto questões para serem discutidas". E isso é cristalino já nas duas primeiras faixas. "Subúrbio" que abre os trabalhos, toca em um ponto interessante: quem mora no município do Rio de Janeiro sabe que todas as localidades situadas para trás do Túnel Rebouças, lamentavelmente... é como se, de certo modo, não pertencessem à cidade - exceção feita ao Estádio do Maracanã. E Chico, ainda que de forma eventualmente idílica, cede a palavra à periferia carioca, numa espécie de pós-Gente Humilde (letra de Vinícius de Moraes e Chico sobre ancestral melodia do violonista Garoto, célebre na voz de Ângela Maria e já gravada até por Renato Russo). Uma atitude louvável - sobretudo vinda de um artista que reside na Zona Sul do Rio.

Na faixa que a sucede, "Outros Sonhos", a insólita narrativa abre o debate acerca da legalização da maconha - e não descriminalização, o que já ocorre hoje em países como Portugal, por exemplo. A letra, literalmente, viaja:

"De noite, raiava o sol, que todo mundo aplaudia;
Maconha só se comprava na tabacaria;
Drogas, na drogaria...".

Chico Buarque permanece na sua convicção pela canção tradicional, passeando pelo samba ("Dura Na Queda", feita para - e sobre - Elza Soares), baião ("Ode Aos Ratos", já gravada em Cambaio, onde é curioso vê-lo se aventurando em um rap-repente), choro ("Bolero Blues"), bossa ("Ela Faz Cinema", que seria, digamos, xipófaga da faixa que a antecede, "As Atrizes"), valsa ("Porque Era Ela, Porque Era Eu") e afins. Talvez por essa opção, Carioca, de um modo geral, não desfrutou de uma recepção lá muito amistosa por parte de determinados setores da chamada crítica... especializada. Houve quem dissesse que, "oito anos depois, lançou o mesmo disco". É compreensível: possivelmente estaria aí embutido o anseio de ouvi-lo soar como... O Rappa.

E também foi dito que não haveria nesse álbum "nenhum clássico para o cancioneiro" do compositor. Lamento discordar. Contudo, há, sim: "Renata Maria", registrada inicialmente por Leila Pinheiro em seu CD Nos Horizontes Do Mundo, com participação do próprio Chico. Primeira parceria deste com Ivan Lins, a música é um primor de arranjo (que emula a exuberância praiana da definitiva "Futuros Amantes", de Paratodos, 1993), com harmonia e melodia (de Ivan) irretocáveis, emoldurando as imagens fantásticas da letra de Chico, utilizando a clássica temática bossa-novística do sujeito-deslumbrado-com-a-mulher-gostosa-na-praia :

"...tudo o que não era ela se desvaneceu:
Cristo, montanhas, florestas, acácias, ipês;
Pranchas coladas na crista das ondas, as ondas suspensas no ar;
Pássaros cristalizados no branco do céu.
(...) Nem uma brisa soprou
Enquanto Renata Maria saía do mar...".

Carioca oferece ainda iguarias como a valsa "Imagina", melodia altamente complexa - uma das primeiras compostas por Antônio Carlos Jobim, isso em 1947 -, que fecha o álbum, com a participação da cantora Mônica Salmaso e do pianista Daniel Jobim, neto do Maestro Soberano. Letrada (com incrível precisão, diga-se) por Chico em 1983, para a trilha do filme Para Viver Um Grande Amor - onde foi gravada por Djavan e Olívia Byington -, somente agora recebe registro em sua voz. Além do CD simples, há também uma versão que traz um DVD bônus com um documentário (com aproximadamente 60 minutos de duração) sobre os bastidores da gravação, intitulado Desconstrução, mostrando um bem-humorado Chico no estúdio.

Segundo o próprio compositor, sua produção musical hoje é bissexta em decorrência da maior elaboração de suas harmonias e melodias. Embora mais reverenciado como um letrista genial - que, de fato, é -, a verdade é que a musicalidade de Chico Buarque atingiu o nível de nomes como o do já mencionado Edu Lobo, por exemplo. Em contraste com a infertilidade autoral de seus congêneres nos últimos dez anos, ele se reafirma, de modo inconteste, como o mais inspirado dos chamados medalhões da MPB.

Sting: Canções de Amor e a Sétima Arte


CDs Songs of Love (2003) e My Funny Valentine: Sting at the Movies (2005)
A&M (Universal)

Resenha publicada no jornal IM - INTERNATIONAL MAGAZINE, edição nº 123 (julho de 2006).





Ex-membro de uma das mais brilhantes bandas de rock de todos os tempos, The Police, o cantor, compositor e baixista Sting - ao partir para a carreira-solo, em 1985 - pôs em prática a sua predileção pelo jazz, tendo o reconhecimento de nomes como Miles Davis, Gil Evans, Branford Marsalis (cujo sax se fez ouvir em quase todos seus CDs solo) e até Antônio Carlos Jobim (que o convidou para participar da magnífica versão de "How Insensitive", em seu derradeiro trabalho, Antônio Brasileiro, 1994). Com isso, refinou o seu pop - e angariou, em contrapartida, a antipatia da crítica, o que até faz sentido: em vez do inusitado country-gospel (!) "Fill Her Up" (de Brand New Day, 1999, com participação de James Taylor; ouça essa - vale a pena), provavelmente preferissem vê-lo sempre no "De Do Do Do De Da Da Da".


Considerado pelo público inglês um de seus melhores letristas, Sting, a bem da verdade, foi, após a dissolução do Police, muito mais ousado do que jamais fora ao lado de seus ex-companheiros de banda, (os excepcionais Andy Summers e Stewart Copeland), flertando com a música étnica (quem não se lembra do dueto com Cheb Mami na eletro-muçulmana "Desert Rose"?), com a bossa nova (a fidelíssima "Big Lie, Small World", também de Brand New Day), sem jamais esquecer como se faz uma boa canção pop ("If I Ever Lose My Faith In You", "If You Love Somebody Set Them Free" e "We'll Be Together").

Desde o seu último CD de inéditas - o surpreendentemente pouco inspirado Sacred Love, 2002 - já foram lançadas duas coletâneas do músico: Songs of Love (2003) e My Funny Valentine: Sting at the Movies (2005).

Songs..., a princípio, foi um produto exclusivo da loja americana de departamentos Victoria's Secret, concebido sem grandes critérios: como o título anuncia, são apenas canções de amor, oito ao todo. Entre elas, a tocante "When We Dance"; a politizada "They Dance Alone" (em homenagem às Mães dos Desaparecidos, do Chile, com participação de dois figurões: Eric Clapton e Mark Knopfler, ambos tocando discretos vilões de nylon), "Ghost Story", belíssima melodia, cuja letra respeita cada uma das notas e possui encanto semelhante; a descontraída "You Still Touch Me"; e as imagens fantásticas de "Fortress Around Your Heart" e, principalmente, "Mad About You":


"Caminhei uma milha solitária sob o luar
e, embora um milhão de estrelas estivessem brilhando,


meu coração estava perdido em planeta distante (...).
Ainda que todos os meus reinos se transformem em areia e desabem no mar, 
estou louco por você (...).

Nunca em minha vida senti-me tão só quanto agora.
Embora eu reclame domínios por entre tudo o que vejo,
isso não significa nada para mim.
Em nossas histórias, não existem vitórias... sem amor".


My Funny Valentine... no entanto, oferece muito mais conteúdo: são dezoito canções de Sting que integraram trilhas de cinema, apresentando não somente faixas que já apareceram em seus álbuns solo, como também (a cereja do bolo) muitas gravações jamais lançadas em discos de carreira do baixista.


Sendo assim, encontramos nessa compilação as conhecidas "Fragile" e "It's Probably Me" (parceria com o já mencionado Eric Clapton, com a presença do próprio nos violões e guitarras); a linda "Shape of My Heart"; o hit "Englishmen in New York"; e as raras "All for Love" (com participação de Rod Stewart e Bryan Adams), e "Moonlight", além de sua impecável versão para "Windmills Of Your Mind".

Embora não possua propriamente a unidade conceitual de um álbum de carreira (por abrigar faixas de várias procedências), trata-se de um álbum de classe, que reitera a importância de Sting no pop adulto mundial.

O desagradável de toda essa história - parece até piada - é que, apesar do respeito que Sting desfruta no Brasil (fruto, além do talento, de seu envolvimento em causas ecológicas relacionadas ao País e a própria influência de nossa música em seu trabalho) ambas as coletâneas... ainda não tiveram ainda uma edição nacional. Mas isso certamente não deterá a quem tiver interesse por esses dois CDs: é só acionar... a importadora mais próxima, é claro...

Humpf, gravadoras... Entendem tanto de música quanto eu de camelos...